A sociedade é um produto da ação humana. A ação humana é conduzida pelas
ideologias. Portanto, a sociedade e qualquer ordenamento concreto dos assuntos
sociais são fruto de ideologias; as ideologias não são, como supõe o marxismo, o
produto de certo estágio da sociedade. Seguramente, os pensamentos e ideias do
homem não são uma realização de indivíduos isolados. O próprio pensamento só
prospera através da cooperação entre os pensadores. Nenhum indivíduo poderia
fazer progredir o seu raciocínio se tivesse necessidade de repensar tudo de novo. O
homem só pode avançar seu pensamento porque seus esforços se apoiaram sobre
os de gerações passadas, que forjaram as ferramentas do pensamento, os
conceitos e as terminologias, e formularam os problemas.
Toda ordem social existente foi pensada e imaginada antes de ser realizada. Esta
precedência temporal e lógica do fator ideológico não significa que alguém formule
um plano completo de organização social à maneira dos utopistas. O que é
pensado antes não é um sistema integrado de organização social que ajuste as
ações individuais; o que é e tem que ser pensado antes são as ações de indivíduos
em relação aos seus semelhantes e as de grupos de indivíduos já formados em
relação a outros grupos. Antes de um homem ajudar seu semelhante a cortar uma
árvore, tal cooperação tem de ser imaginada. Antes de se efetuar um ato de
escambo, a ideia de mútua troca de bens e serviços tem de ser concebida. Não é
necessário que os indivíduos tenham consciência do fato de que essa reciprocidade
resulte no estabelecimento de laços sociais e na formação de um sistema social. O
indivíduo não planeja e executa ações com o propósito de construir uma sociedade.
É a sua conduta e a correspondente conduta dos outros que geram os corpos
sociais.
Todo ordenamento social existente é o produto de ideologias previamente
pensadas. Numa sociedade, novas ideologias podem surgir e suplantar as mais
antigas e assim transformar o sistema social. Não obstante, a sociedade é sempre
a criação de ideologias anteriores, tanto no sentido temporal como lógico. A ação é
sempre dirigida pelas ideias; realiza o que foi antes pensado. Se atribuirmos um caráter antropomórfico à ideologia podemos dizer que ela tem
poder sobre os homens. Poder é a faculdade ou a capacidade de dirigir ações. Em
geral, dizemos apenas que um homem, ou um grupo de homens, é poderoso.
Assim sendo, poder se define como a capacidade de dirigir a ação de outras
pessoas. Quem tem poder, deve-o a uma ideologia. Somente as ideologias podem
conferir a um homem o poder de influenciar a conduta e a escolha de outras
pessoas. Alguém só pode vir a ser um líder se estiver apoiado em uma ideologia
que torne as outras pessoas dóceis e submissas. O poder, portanto, não é algo
tangível e material, mas um fenômeno moral e espiritual. O poder de um rei
repousa sobre o reconhecimento da ideologia monárquica por parte de seus
súditos.
Quem usa o seu poder para comandar o estado, isto é, o aparato social de
coerção e compulsão, governa. Governar é exercer o poder no corpo político. O
governo apoia-se sempre no poder, isto é, no poder de dirigir as ações de outras
pessoas.
Certamente é possível estabelecer um governo baseado na violenta opressão de
pessoas relutantes. O traço característico do estado e do governo consiste no uso
da coerção violenta, ou na ameaça de usá-la sobre aqueles que não estão
dispostos a ceder voluntariamente. Mas mesmo esta opressão violenta também se
baseia no poder ideológico. Quem pretender aplicar a violência necessita da
cooperação voluntária de algumas pessoas. Um indivíduo que só possa contar
consigo mesmo jamais poderá governar por meio da violência física.120 Necessita
do apoio ideológico de um grupo a fim de subjugar outros grupos. O tirano precisa
ter um séquito de adeptos que obedeçam, voluntariamente, a suas ordens. Esta
espontânea obediência lhe proporciona o aparato necessário para dominar os
demais. O sucesso ou o fracasso de sua dominação depende da relação numérica
de dois grupos: dos que apoiam voluntariamente e dos que ele domina pela força.
Embora um tirano possa governar durante algum tempo apoiado numa minoria,
estando essa minoria armada e a maioria não, em longo prazo uma minoria não
consegue manter submissa a maioria. Os oprimidos farão uma rebelião para se
libertarem do jugo do tirano.
Um sistema durável de governo tem que estar baseado numa ideologia aceita
pela maioria. O “verdadeiro” fator – as “forças efetivas” que sustentam o governo e
que atribuem aos governantes o poder de usar violência contra grupos minoritários
renitentes – é essencialmente ideológico, moral e espiritual. Os governantes que
não reconheceram este princípio básico de governo e, confiando na suposta
invencibilidade de suas forças armadas, menosprezaram o espírito e as ideias
foram finalmente depostos por seus adversários. A interpretação muito comum em
diversos livros sobre política e história, que afirma ser o poder um fator “real” não
dependente de ideologias, é um equívoco. O termo Realpolitik só tem sentido se
usado para designar uma política que considere ideologias comumente aceitas, em contraste com uma política baseada em ideologias não muito conhecidas e,
portanto, inadequadas para servir de base a um sistema durável de governo.
Quem interpreta o poder como sendo o poder físico ou “real” de se impor, e
considera a ação violenta como a própria origem do governo, vê as coisas do
ângulo estreito de um oficial subalterno no comando de uma unidade do exército
ou da polícia. A estes subordinados é atribuída uma tarefa específica, na estrutura
da ideologia dominante. Seus chefes confiam à sua responsabilidade tropas que
não apenas estão equipadas, armadas e treinadas para o combate, como também
imbuídas do espírito de obediência às ordens recebidas. Os comandantes dessas
unidades menores consideram este fator moral como algo natural, porque eles
também estão animados pelo mesmo espírito e nem mesmo podem imaginar outra
ideologia. O poder de uma ideologia consiste precisamente no fato de que as
pessoas a ela se submetem sem hesitação e sem escrúpulos.
Para o chefe do governo, entretanto, as coisas são diferentes. Ele precisa
esforçar-se para preservar a moral das forças armadas e a lealdade do resto da
população, uma vez que estes fatores morais são os únicos elementos “reais” sobre
os quais repousa a duração do seu domínio. Seu poder definha, se a ideologia que
o suporta perde a força.
As minorias também podem, às vezes, assumir o poder por meio de uma maior
capacidade militar e estabelecer, assim, o domínio. Mas tal situação não pode ser
duradoura. Se os conquistadores vitoriosos não conseguirem converter logo o
sistema de dominação pela força num sistema de governo consentido pela adesão
dos governados a uma ideologia, sucumbirão em novos combates. Todas as
minorias vitoriosas que estabeleceram um sistema de governo duradouro
conseguiram prolongar o seu domínio por meio da adoção de uma ideologia, ainda
que tardiamente. Legitimaram sua própria supremacia, seja adotando a ideologia
dos vencidos, seja transformando-a. Quando não ocorre nem uma nem outra
destas duas hipóteses, o grande número de oprimidos desaloja a minoria
opressora, quer por rebelião aberta, quer através da silenciosa, mas constante
pressão das forças ideológicas.121
Muitas das grandes conquistas históricas puderam durar porque os invasores se
aliaram às classes da nação derrotada que tinha o respaldo de ideologia dominante
e, assim, foram considerados como governantes legítimos. Foi esse o sistema
adotado pelos tártaros na Rússia, pelos turcos nos principados do Danúbio e em
grande parte da Hungria e da Transilvânia, e pelos ingleses e holandeses nas
Índias Orientais. Um número relativamente insignificante de ingleses podia
governar muitas centenas de milhões de indianos, porque os príncipes indianos e a
aristocracia proprietária de terras viam na dominação inglesa um meio de preservar
seus privilégios e lhe transferiam o apoio que a ideologia aceita pelos indianos em
geral dava à sua própria supremacia. O império britânico na Índia foi estável enquanto a ordem social tradicional tinha aprovação da opinião pública. A Pax
Britannica salvaguardava os privilégios dos príncipes e dos latifundiários e protegia
as massas das agonias de guerras entre principados e de guerras intestinas de
sucessão. Nos dias de hoje,
122 a infiltração de ideias subversivas provenientes do
exterior pôs fim à dominação inglesa e à ameaça de preservação da sua antiga
ordem social.
Algumas vezes, minorias vitoriosas devem o seu sucesso a uma superioridade
tecnológica. Isto não altera a questão. Em longo prazo, não é possível impedir que
a maioria tenha acesso às melhores armas. Foram fatores ideológicos, e não o
poder de fogo de suas forças armadas, que garantiram o domínio inglês na
Índia.123
A opinião pública de um país pode estar tão dividida ideologicamente, que
nenhum grupo seja suficientemente forte para estabelecer um governo durável.
Surge, então, a anarquia. As revoluções e os conflitos internos tornam-se
permanentes.
O tradicionalismo como uma ideologia
O tradicionalismo é uma ideologia que considera a fidelidade a valores, costumes
e modos de proceder, transmitidos ou supostamente transmitidos pelos ancestrais,
como certa e conveniente. Não é necessário que esses antepassados sejam os
ancestrais no sentido biológico do termo, ou possam honestamente ser assim
considerados; às vezes, trata-se apenas daqueles que já habitavam o país, ou que
eram adeptos da mesma fé religiosa ou simplesmente precursores no exercício de
alguma tarefa específica. Para saber quem deve ser considerado um ancestral e
qual o conteúdo do corpo de tradição transmitido, é necessário recorrer aos
ensinamentos concretos de cada variedade de tradicionalismo. A ideologia destaca
alguns dos ancestrais e relega outros ao esquecimento; às vezes, considera como
ancestrais pessoas que nem têm relação direta com a suposta descendência.
Frequentemente constrói uma doutrina “tradicional” cuja origem é recente e que
difere das ideologias realmente sustentadas pelos ancestrais.
O tradicionalismo tenta justificar suas proposições, alegando que deram
excelentes resultados no passado. Saber se os fatos confirmam esta assertiva é
outra questão. Pela pesquisa, seria possível, em alguns casos, desmascarar erros
nas afirmações históricas de uma crença tradicional. Entretanto, isto nem sempre é
suficiente para desacreditá-la. Porque a essência do tradicionalismo não está em
fatos históricos reais, mas na opinião sobre eles mantida – por mais errada que
seja – e no desejo de acreditar em coisas às quais se atribui a autoridade da
antiguidade.
4. O meliorismo e a ideia de progresso As noções de progresso e retrocesso só fazem sentido num sistema teleológico de
pensamento. Numa tal estrutura, faz sentido chamar de progresso o aproximar-se
da meta desejada, e de retrocesso um movimento na direção oposta. Tais
conceitos, se não fazem referência à ação de algum agente e a um objetivo
definido, são vazios e desprovidos de sentido.
Uma das deficiências das filosofias do século XIX foi ter interpretado erradamente
o significado da mudança cósmica ao introduzir, indevidamente, a ideia de
progresso na teoria da transformação biológica. Quando comparamos um
determinado estado de coisas com estados anteriores, podemos honestamente
usar os termos desenvolvimento e evolução, num sentido neutro. Neste caso,
evolução significa o processo que provocou a passagem do estado anterior para o
estado atual. Mas devemos prevenir-nos para não cometer o erro fatal que consiste
em confundir mudança com melhoria, e evolução com uma passagem para formas
superiores de vida. Tampouco é admissível substituir o antropocentrismo religioso e
antigas doutrinas metafísicas por um antropocentrismo pseudocientífico.
Não obstante, não é necessário que a praxeologia faça uma crítica desta filosofia.
Sua tarefa é refutar os erros contidos nas ideologias correntes.
A filosofia social do século XVIII supunha que a humanidade, finalmente, havia
entrado na idade da razão. Enquanto no passado predominaram os erros teológicos
e metafísicos, doravante prevaleceria a razão. As pessoas iriam libertar-se cada vez
mais das cadeias da superstição e dedicariam todos os seus esforços à melhoria
constante das instituições sociais. Cada nova geração daria sua contribuição para
essa tarefa gloriosa. Com o tempo, a sociedade se tornaria, cada vez mais, a
sociedade dos homens livres, visando ao máximo de felicidade para o maior
número de pessoas. É claro que é possível ocorrerem recuos temporários. Mas ao
final de tudo triunfaria a boa causa, por ser a causa da razão. As pessoas se diziam
felizes por viver uma era de luzes que, pela descoberta das leis que regem a
conduta racional, haviam aberto o caminho a uma constante melhoria das
condições de vida do homem. Só lamentavam o fato de já serem muito velhas para
poder testemunhar todos os benefícios da nova filosofia. “Eu gostaria”, dizia
Bentham a Philarète Chasles, “de ter o privilégio de viver os anos que me restam
no fim de cada século que se seguir a minha morte; assim, eu poderia testemunhar
os efeitos de meus escritos”.124
Todas essas esperanças se baseavam na firme convicção, própria da época, de
que as massas são moralmente boas e razoáveis. As camadas superiores, os
aristocratas privilegiados que tinham de tudo, eram considerados depravados. O
homem comum, especialmente os camponeses e os operários, eram
romanticamente glorificados como nobres e como incapazes de fazer um
julgamento errado. Os filósofos estavam, portanto, persuadidos de que a
democracia, o governo pelo povo, traria a perfeição social. Este preconceito foi o erro fatal dos humanitaristas, dos filósofos e dos liberais.
Os homens não são infalíveis: ao contrário, erram com frequência. Não é verdade
que as massas tenham sempre razão e saibam quais são os melhores meios para
atingir os fins. “A crença no homem comum” não é mais bem fundamentada do que
a crença nos dons sobrenaturais dos reis, dos padres e dos nobres. A democracia
garante um sistema de governo de acordo com os desejos e planos da maioria.
Mas não pode impedir as maiorias de serem vítimas de ideias falsas nem de
adotarem políticas que não só são inadequadas para atingir os fins pretendidos,
como também podem ser desastrosas. As maiorias também podem errar e destruir
a nossa civilização. A boa causa não triunfará apenas por ser razoável e
conveniente. Somente se os homens forem capazes de adotar políticas razoáveis e
suscetíveis de atingir os fins por eles mesmos desejados, a civilização se
aperfeiçoará e a sociedade e o estado poderão fazer com que os homens fiquem
mais satisfeitos, embora não felizes num sentido metafísico. Se esta condição se
concretizará ou não, só o futuro imprevisível poderá revelar.
Não há lugar, num sistema praxeológico, para o meliorismo ou para o fatalismo
otimista. O homem é livre no sentido de ter que escolher de novo, diariamente,
entre políticas que conduzem ao sucesso e políticas que conduzem ao desastre, à
desintegração social e ao barbarismo.
O termo progresso não faz sentido quando aplicado a eventos cósmicos ou a uma
visão de mundo abrangente. Não temos informações acerca dos planos da fonte de
energia que primeiro moveu o mundo. Mas o problema é diferente, se aplicamos
este termo no contexto de uma doutrina ideológica. A imensa maioria da
humanidade se esforça para ter uma maior e melhor abundância de comida,
roupas, casas e outros bens materiais. Ao considerarem como melhoria e progresso
uma elevação no nível de vida das massas, os economistas não estão aderindo a
um materialismo mesquinho. Estão simplesmente reconhecendo o fato de que as
pessoas são motivadas pelo desejo de melhorar as condições materiais de sua
existência. Julgam as políticas do ponto de vista dos objetivos que os homens
querem atingir. Quem desdenha a queda na taxa de mortalidade infantil e o
gradual desaparecimento da fome e das epidemias, que atire a primeira pedra no
materialismo dos economistas.
Só há um critério para avaliar a ação humana: saber se ela é ou não adequada
para atingir os fins escolhidos pelos agentes homens.
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A ação humana- Ludwig Von Mises
AléatoireMenos Marx, por favor. Aproveite a leitura, em breve mais bons livros. Os capítulos do livro tem tópicos muito grandes, por isso dei um capítulo à cada um. Só para os capítulos não ficarem muito grandes, com os tópicos inclusos. Notas de rodapé est...