Teoria econômica e a prática da ação humana

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É comum a muita gente censurar a economia por ser retrógrada. Ora, é óbvio que
a nossa teoria econômica não é perfeita. Não existe perfeição no conhecimento teoria. A ciência não nos dá certeza final e absoluta. Apenas nos dá convicção
dentro dos limites de nossa capacidade mental e do prevalecente estado do
conhecimento científico. Um sistema científico não é senão um estágio na
permanente busca de conhecimento. É necessariamente afetado pela insuficiência
inerente a todo esforço humano. Mas reconhecer estes fatos não implica que o
estágio atual da economia seja retrógrado. Significa apenas que a economia é algo
vivo – e viver implica tanto imperfeição como mudança.
A acusação do alegado atraso é levantada contra a economia a partir de dois
pontos de vista diferentes.
Existem, de um lado, alguns naturalistas e físicos que censuram a economia por
não ser uma ciência natural e não aplicar os métodos e procedimentos de
laboratório. Um dos propósitos deste tratado é demolir a falácia dessas ideias.
Nestas observações introdutórias, será suficiente dizer algumas palavras sobre seus
antecedentes psicológicos. É comum, a quem tem mentalidade estreita, depreciar
diferenças encontradas nas outras pessoas. O camelo, na fábula, desaprova todos
os outros animais por não terem uma bossa, e os ruritânios criticam os laputânios
por não serem ruritânios. O pesquisador que trabalha em laboratório considera este
trabalho como a única fonte válida para investigação, e equações diferenciais como
a única forma adequada de expressar os resultados do pensamento científico. É
simplesmente incapaz de perceber os problemas epistemológicos da ação humana.
Para ele, a economia não pode ser nada além de uma espécie de mecânica.
Há outros que asseguram que algo deve estar errado com as ciências sociais,
porque as condições sociais são insatisfatórias. As ciências sociais conseguiram
resultados espantosos nos últimos duzentos ou trezentos anos e a aplicação prática
desses resultados foi o que deu origem a uma melhoria, sem precedentes, no
padrão de vida em geral. Mas, dizem esses críticos, as ciências sociais falharam
completamente no que diz respeito a tornar mais satisfatórias as condições sociais.
Não eliminaram a miséria e a fome, crises econômicas e desemprego, guerra e
tirania. São estéreis e não contribuíram para a promoção da liberdade e do bem
estar geral.
Esses rabugentos não chegam a perceber que o tremendo progresso da
tecnologia de produção e o consequente aumento de riqueza e bem estar só foram
possíveis graças à adoção daquelas políticas liberais que representavam a
aplicação prática dos ensinamentos da economia. Foram as ideias dos economistas
clássicos que removeram os controles que velhas leis, costumes e preconceitos
impunham sobre o progresso tecnológico, libertando o gênio dos reformadores da
camisa de força das guildas, da tutela do governo e das pressões sociais de vários
tipos. Foram essas ideias que reduziram o prestígio de conquistadores e
expropriadores e demonstraram o benefício social decorrente da atividade
empresarial. Nenhuma das grandes invenções modernas teria tido utilidade prática
se a mentalidade da era pré-capitalista não tivesse sido completamente demolida
humano, nem em qualquer outra conquista humana. A onisciência é negada ao
homem. A teoria mais elaborada que parece satisfazer completamente a nossa
sede de conhecimento pode um dia ser emendada ou superada por uma nova pelos economistas. O que é comumente chamado de “revolução industrial” foi o
resultado da revolução ideológica efetuada pelas doutrinas dos economistas. Foram
eles que explodiram velhos dogmas: que é desleal e injusto superar um competidor
produzindo melhor e mais barato; que é iníquo desviar-se dos métodos tradicionais
de produção; que as máquinas são um mal porque trazem desemprego; que é
tarefa do governo evitar que empresários fiquem ricos e proteger o menos eficiente
na competição com o mais eficiente; que reduzir a liberdade dos empresários pela
compulsão ou coerção governamental em favor de outros grupos sociais é um meio
adequado para promover o bem estar nacional. A economia política inglesa e a
fisiocracia francesa indicaram o caminho do capitalismo moderno. Foram elas que
tornaram possível o progresso decorrente da aplicação das ciências naturais,
proporcionando às massas benefícios nunca sequer imaginados.
O que há de errado com a nossa época é precisamente a difundida ignorância do
papel desempenhado por essas políticas de liberdade econômica na evolução
tecnológica dos últimos duzentos anos. As pessoas tornaram-se prisioneiras da
falácia segundo a qual o progresso nos métodos de produção foi contemporâneo à
política de laissez-faire apenas por acidente. Iludidos pelos mitos marxistas,
consideram o estágio atual de desenvolvimento como o resultado da ação de
misteriosas “forças produtivas” que não dependem em nada de fatores ideológicos.
A economia clássica, estão convencidos, não foi um fator no desenvolvimento do
capitalismo, mas, ao contrário, foi seu produto, sua “superestrutura ideológica”, foi
uma doutrina destinada a defender os interesses espúrios dos exploradores
capitalistas. Consequentemente, a abolição do capitalismo e a substituição da
economia de mercado e da livre iniciativa pelo socialismo totalitário não
prejudicaria o ulterior progresso da tecnologia. Ao contrário, promoveria o
desenvolvimento tecnológico pela remoção dos obstáculos que os interesses
egoístas dos capitalistas colocaram no seu caminho.
O traço característico dessa era de guerras destrutivas e de desintegração social é
a revolta contra a economia. Thomas Carlyle denominava a economia de “ciência
triste” e Karl Marx estigmatizou os economistas como sicofantas da burguesia.
Charlatães – exaltando suas poções mágicas e seus atalhos para o paraíso
terrestre – se satisfazem em desdenhar a economia, qualificando-a como
“ortodoxa” ou “reacionária”. Demagogos se orgulham do que chamam de suas
vitórias sobre a economia. O homem “prático” alardeia sua ignorância em
economia e seu desprezo pelos ensinamentos de economistas “teóricos”. As
políticas econômicas das últimas décadas têm sido o resultado de uma mentalidade
que escarnece de qualquer teoria econômica bem fundamentada e glorifica as
doutrinas espúrias de seus detratores. O que é conhecido como economia
“ortodoxa” não é ensinado nas universidades da maior parte dos países, sendo
virtualmente desconhecida dos líderes políticos e escritores. A culpa da situação
econômica insatisfatória certamente não pode ser imputada à ciência que os
governantes e massas ignoram e desprezam. É preciso que se enfatize que o destino da civilização moderna desenvolvida pelos
povos de raça branca nos últimos duzentos anos está inseparavelmente ligado ao
destino da ciência econômica. Esta civilização pôde surgir porque esses povos
adotaram ideias que resultavam da aplicação dos ensinamentos da economia aos
problemas de política econômica. Necessariamente sucumbirá se as nações
continuarem a seguir o rumo que tomaram, enfeitiçadas pelas doutrinas que
rejeitam o pensamento econômico.
É verdade que a economia é uma ciência teórica e, como tal, se abstém de
qualquer julgamento de valor. Não lhe cabe dizer que fins as pessoas deveriam
almejar. É uma ciência dos meios a serem aplicados para atingir os fins escolhidos
e não, certamente, uma ciência para escolha dos fins. Decisões finais, a avaliação e
a escolha dos fins, não pertencem ao escopo de nenhuma ciência. A ciência nunca
diz a alguém como deveria agir; meramente mostra como alguém deve agir se
quiser alcançar determinados fins.
Para muita gente pode parecer que isso é muito pouco, e que uma ciência
limitada à investigação do ser, e incapaz de expressar um julgamento de valor
sobre os mais elevados e definitivos fins não tem qualquer importância para a vida
e a ação humana. Isto também é um erro. Entretanto, o desmascaramento desse
erro não é tarefa destas notas introdutórias. É um dos objetivos deste tratado.

A ação humana- Ludwig Von MisesOnde histórias criam vida. Descubra agora