Economia e a Revolta Contra a Razão

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A revolta contra a razão
Houve, ao longo da história, filósofos que não hesitaram em superestimar a
capacidade da razão. Supunham que o homem fosse capaz de descobrir, pelo
raciocínio, as causas originais dos eventos cósmicos ou os objetivos que a força
criadora do universo, determinante de sua evolução, pretendia alcançar.
Discorreram sobre o “absoluto” com a tranquilidade de quem descreve o seu
relógio de bolso. Não hesitaram em anunciar valores eternos e absolutos nem em
estabelecer códigos morais que deveriam ser respeitados por todos os homens.
Houve também uma longa série de criadores de utopias. Imaginavam paraísos
terrestres onde só prevaleceria a razão pura. Não percebiam que aquilo que
consideravam como razões finais ou como verdades manifestas eram tão somente
fantasia de suas mentes. Consideravam-se infalíveis e, com toda tranquilidade,
defendiam a intolerância e o uso da violência para oprimir dissidentes e heréticos.
Preferiam a implantação de um regime ditatorial, ou para si mesmo, ou para
aqueles que se dispusessem a executar fielmente os seus planos. Acreditavam que
essa era a única forma de salvação para uma humanidade sofredora.
Houve Hegel. Certamente foi um pensador profundo; suas obras são um rico
acervo de ideias estimulantes. Não obstante, escreveu sempre dominado pela
ilusão de que Geist, o Absoluto, revelava-se por seu intermédio. Não havia nada no
universo que não estivesse ao alcance da sabedoria de Hegel. Pena que sua
linguagem fosse tão ambígua, a ponto de ensejar múltiplas interpretações. Os
hegelianos de direita entenderam-na como um endosso ao sistema prussiano de
governo autocrático, bem como aos dogmas da igreja prussiana. Os hegelianos de
esquerda extraíram de suas teorias o ateísmo, o radicalismo revolucionário mais
intransigente e doutrinas anarquistas.
Houve Augusto Comte. Pensava conhecer o futuro que estava reservado para a
humanidade. E, portanto, considerava-se o supremo legislador. Pretendia proibir
certos estudos astronômicos, por considerá-los inúteis. Planejava substituir o
cristianismo por uma nova religião e chegou a escolher uma mulher para ocupar o
lugar da Virgem. Comte pode ser desculpado, já que era louco, no sentido mesmo
com que a patologia emprega este vocábulo. Mas como desculpar os seus
seguidores?
Muitos outros exemplos deste tipo poderiam ser enumerados. Mas não podem ser
usados como argumentos contra a razão, o racionalismo ou a racionalidade. Tais
desvarios não têm nada a ver com o problema essencial que consiste em procurar
saber se a razão é ou não o instrumento adequado e único de que dispõe o homem
para obter tanto conhecimento quanto lhe seja possível. Aqueles que, honesta e
conscienciosamente, procuram a verdade jamais pretenderam que a razão e a
pesquisa científica possam responder a todas as questões.
Sempre tiveram plena consciência das limitações da mente humana. Não podem
ser responsabilizados pela tosca filosofia de um Haeckel, nem pelo simplismo de
diversas escolas materialistas.
Os filósofos racionalistas sempre estiveram preocupados em mostrar tanto os
limites da teoria apriorística quanto os da investigação empírica.54 David Hume, o
fundador da economia política inglesa, os utilitaristas e os pragmatistas americanos
não podem ser acusados de haver superestimado a capacidade do homem para
alcançar a verdade. Seria mais justificável acusar a filosofia dos últimos duzentos
anos de um excesso de agnosticismo e de cepticismo do que de um excesso de
confiança no que poderia ser alcançado pela mente humana.
A revolta contra a razão, atitude mental típica de nossa época, não se origina na
falta de modéstia, cautela ou autocrítica por parte dos filósofos. Tampouco pode
ser atribuída a falhas na evolução da moderna ciência natural. Ninguém pode
ignorar as fantásticas conquistas da tecnologia e da terapêutica. É inútil atacar a
ciência moderna, seja do ponto de vista do intuicionismo e do misticismo, seja de
qualquer outro ângulo. A revolta contra a razão foi dirigida para outro alvo. Não
tinham em mira as ciências naturais, e sim a economia. O ataque às ciências
naturais foi uma consequência lógica e natural do ataque à economia. Seria
inconcebível impugnar o uso da razão em um determinado campo do
conhecimento, sem impugná-lo também nos demais.
Esta insólita reação teve sua origem na situação existente em meados do século
XIX. Os economistas já tinham, naquela época, demonstrado cabalmente que as
utopias socialistas não passavam de ilusões fantasiosas. Entretanto, as deficiências
da ciência econômica clássica os impediram de compreender por que qualquer
plano socialista é irrealizável; mas eles já sabiam o suficiente para demonstrar a
futilidade dos programas socialistas. As ideias comunistas já estavam derrotadas.
Os socialistas não tinham como responder às devastadoras críticas que lhes eram
feitas, nem como aduzir qualquer argumento novo em seu favor.Parecia que o
socialismo estava liquidado, e para sempre.
Só havia um caminho para evitar a derrocada: atacar a lógica e a razão e
substituir o raciocínio pela intuição mística. Estava reservado a Karl Marx o papel
histórico de propor esta solução. Com base no misticismo dialético de Hegel, Marx,
tranquilamente, arrogou-se a capacidade de predizer o futuro. Hegel pretendia
saber que Geist, ao criar o universo, desejava instaurar a monarquia de Frederico
Guilherme III. Mas Marx estava mais bem informado sobre os planos de Geist:
havia descoberto que a evolução histórica nos conduziria, inevitavelmente, ao
estabelecimento do milênio socialista. O socialismo estava fadado a acontecer
“com a inexorabilidade de uma lei da natureza”. E como, segundo Hegel, cada fase
ulterior da história é melhor e superior do que a que a antecedeu, não cabia
nenhuma dúvida de que o socialismo, a etapa final da evolução da humanidade,
seria perfeito sob todos os aspectos. Assim sendo, resultava inútil a discussão dos
detalhes do funcionamento de uma comunidade socialista. A história, no devido
tempo, disporia todas as coisas da melhor maneira; e para isso não necessitava da
ajuda dos homens, meros seres mortais.
Mas havia ainda um obstáculo principal a superar: a crítica devastadora dos
economistas. Marx, entretanto, já tinha uma solução para superar este obstáculo. A
razão humana, afirmava ele, por sua própria natureza, não tem condições de
descobrir a verdade. A estrutura lógica da mente varia segundo as várias classes
sociais. Não existe algo que se possa considerar como uma lógica universalmente
válida. A mente humana só pode produzir “ideologias”, ou seja, segundo a
terminologia marxista, um conjunto de ideias destinadas a dissimular os interesses
egoístas da classe social de quem as formula. Portanto, a mentalidade “burguesa”
dos economistas é absolutamente incapaz de produzir algo que não seja uma
apologia ao capitalismo. Os ensinamentos da ciência “burguesa”, que são uma
consequência da lógica “burguesa”, não têm nenhuma validade para o proletariado,
a nova classe social que abolirá todas as classes e transformará a Terra num
paraíso.
Mas, evidentemente, a lógica da classe proletária não é apenas a lógica de uma
classe. “As ideias que a lógica proletária engendra não são ideias partidárias, mas
emanações da lógica mais pura e simples”.55 Mais ainda, em virtude de algum
privilégio especial, a lógica de certos burgueses não estava manchada pelo pecado
original de sua condição burguesa. Karl Marx, o filho de um próspero advogado,
casado com a filha de um nobre prussiano, e seu colaborador Frederick Engels, um
rico fabricante de tecidos, se consideravam acima de suas próprias leis e, apesar da
origem burguesa, se julgavam dotados da capacidade de descobrir a verdade
absoluta.
Compete à história explicar as condições que fizeram com que essa doutrina tão
primária se tornasse tão popular. A tarefa da economia é outra. Compete-lhe
analisar o polilogismo marxista, bem como todos os demais tipos de polilogismo
formados segundo o mesmo modelo, e demonstrar suas falácias e contradições.

A ação humana- Ludwig Von MisesOnde histórias criam vida. Descubra agora