O exame praxeológico do polilogismo

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Uma ideologia, no sentido com que os marxistas empregam o termo, é uma
doutrina que, embora errada do ponto de vista da autêntica lógica proletária, é
conveniente aos interesses egoístas da classe que a formulou. Assim sendo, uma
ideologia é sempre falsa, mas atende aos interesses da classe que a formulou,
precisamente por causa de sua falsidade. Muitos marxistas acreditam ter provado
este princípio ao alegarem que as pessoas não almejam o conhecimento em si. O
que interessa ao cientista é ser bem-sucedido. As teorias são formuladas,
invariavelmente, objetivando-se sua aplicação prática. A ciência pura ou a
desinteressada busca da verdade é algo que, na realidade, não existe.
Só para argumentar, admitamos que todo esforço para alcançar a verdade seja
motivado por considerações sobre sua aplicação prática para atingir determinado
objetivo. Ainda assim, isto não explica por que uma teoria “ideológica” – isto é,
falsa – seria mais proveitosa do que uma teoria correta. O fato de a aplicação
prática de uma teoria produzir o resultado previsto é universalmente aceito como
uma confirmação de sua validade. É um paradoxo afirmar que uma doutrina falsa
possa ser mais útil do que uma doutrina correta.
Os homens usam armas de fogo. Para aprimorá-las, desenvolveu-se a balística.
Mas é claro que, precisamente porque desejavam uma maior eficácia, fosse para
caçar animais, fosse para se matarem uns aos outros, procuraram desenvolver uma
teoria balística correta. De nada serviria uma balística meramente “ideológica”.
Para os marxistas, não passa de uma “pretensão arrogante” o fato de os
cientistas afirmarem ter na simples busca do conhecimento uma motivação
suficiente para seu trabalho. Assim, afirmam que Maxwell chegou à sua teoria das
ondas eletromagnéticas graças a interesses comerciais na implantação do telégrafo
sem fio.59 É irrelevante, neste nosso exame da questão da ideologia, se isto é
verdade ou não. O que importa é saber se o suposto interesse dos industriais do
século XIX, que consideravam o telégrafo sem fio como “a pedra filosofal e o elixir
da juventude”,60 induziu Maxwell a formular uma teoria correta sobre as ondas
eletromagnéticas ou se o induziu a formular uma superestrutura ideológica dos
interesses egoístas da classe burguesa. Não há dúvida de que a pesquisa
bacteriológica foi motivada não apenas pelo desejo de combater doenças
contagiosas, mas também pelo desejo dos produtores de vinho e de queijo em
melhorar seus métodos de produção. Mas o resultado obtido, certamente, não é
“ideológico”, no sentido com que os marxistas empregam este termo.
O que levou Marx a formular sua doutrina sobre ideologias foi o desejo de solapar
o prestígio da ciência econômica. Marx tinha plena consciência da sua incapacidade
para refutar as objeções levantadas pelos economistas quanto à praticabilidade dos
projetos visionários dos socialistas. Na verdade, estava tão fascinado pelas teorias
dos economistas clássicos ingleses, que as considerava intocáveis. Ou Marx nunca
chegou, a saber, das dúvidas que a teoria clássica de valor suscitava nas mentes
mais judiciosas, ou, se chegou, a saber, não compreendeu suas transcendências.
Suas ideias econômicas são pouco mais do que uma versão deturpada das teorias
de Ricardo. Quando Jevons e Menger abriram uma nova era do pensamento
econômico, a carreira de Marx como autor de textos sobre economia já tinha
terminado; o primeiro volume de Das Kapital já havia sido publicado alguns anos
antes. A única reação de Marx à teoria do valor marginal foi o adiamento da
publicação dos subsequentes volumes de sua obra principal, que só vieram a ser
publicados depois da sua morte.61
Ao desenvolver sua doutrina sobre ideologia, Marx tinha em vista a economia e a
filosofia social do utilitarismo. Sua única intenção era destruir a reputação dos
ensinamentos econômicos que não conseguia refutar por meio da lógica e do
raciocínio. Deu à sua doutrina o caráter de lei universal, válida para todas as
classes sociais em todos os tempos, porque, se sua aplicabilidade ficasse restrita a
um único evento histórico, não poderia ser considerada como lei universal. Pelas
mesmas razões não limitou a validade de sua doutrina ao pensamento econômico,
estendendo-a a todos os ramos do conhecimento.
Segundo Marx, a economia burguesa prestou à burguesia um duplo serviço.
Primeiro, na luta contra o feudalismo e o despotismo real e, depois, na luta contra
a nascente classe proletária. A economia propiciava uma justificativa racional e
moral para a exploração capitalista. Era se quisermos empregar um termo posterior
a Marx, a racionalização das reivindicações dos capitalistas.62 Foram os
capitalistas, envergonhados de sua cobiça e das motivações mesquinhas de sua
própria conduta, e desejosos de evitar a condenação por parte da sociedade, que
encorajaram seus sicofantas, os economistas, a formular doutrinas que lhes
reabilitassem perante a opinião pública.
Ora, recorrer ao conceito de racionalização proporciona apenas uma descrição
psicológica dos motivos que impelem um homem ou um grupo de homens a
formular um teorema ou mesmo toda uma teoria. Mas não nos informa nada sobre
a validade ou nulidade da teoria em exame. Se for constatada a falsidade da teoria
proposta, o conceito de racionalização serve apenas como uma interpretação
psicológica das causas que levaram seus autores ao erro. Mas, se não conseguimos
apontar falhas na teoria proposta, nenhum apelo ao conceito de racionalização
pode anular sua validade. Se fosse verdade que os economistas não teriam outro
intuito que não o de defender as injustas reivindicações dos capitalistas, ainda
assim suas teorias poderiam ser bastante corretas. O único meio aceitável de
refutar uma teoria é submetê-la ao exame da razão e substituí-la por outra teoria
melhor. Ao lidar com o teorema de Pitágoras ou com a teoria dos custos
comparativos, não estamos interessados na motivação psicológica que impeliu
Pitágoras e Ricardo a formularem estes teoremas, embora isto possa ser
importante para o historiador ou para o biógrafo. Para a ciência, a única questão
relevante é saber se esses teoremas resistem a um exame lógico e racional. Os
antecedentes sociais ou raciais de seus autores são irrelevantes do ponto de vista
da ciência.
É verdade que as pessoas, quando querem justificar seus interesses particulares,
procuram usar doutrinas que são mais ou menos aceitas pela opinião pública em
geral. Mais ainda, são perfeitamente capazes de inventar e propagar doutrinas que
possam servir aos seus próprios interesses. Mas isto não explica por que tais
doutrinas, que favorecem os interesses de uma minoria em detrimento dos demais,
são aceitas pela opinião pública em geral. Essas doutrinas “ideológicas” quer sejam
o produto de uma “falsa consciência” que força o homem a pensar
inadvertidamente de uma maneira que convém aos interesses de sua classe, quer
sejam o produto de uma deliberada distorção da verdade, terão sempre que se
defrontar com as ideologias formuladas pelas demais classes e superá-las. Surge
então uma disputa entre ideologias conflitantes. Os marxistas explicam a vitória ou
a derrota nesses conflitos como uma consequência do determinismo histórico.
Geist, a fonte mítica de toda energia, segue um plano definido e predeterminado.
Conduz a humanidade, etapa por etapa, até o estágio final representado pela bemaventurança
do socialismo. Cada etapa é o produto de certo estágio tecnológico;
todas as demais características da época são a necessária superestrutura
ideológica daquele estágio tecnológico. Geist vai forçando o homem a conceber, e
a realizar, no devido tempo, a tecnologia adequada ao momento que está vivendo.
Tudo o mais é consequência desse estágio tecnológico. O moinho manual tornou
possível a sociedade feudal; a máquina a vapor, por seu turno, deu lugar ao
capitalismo.63 A vontade e a razão humanas desempenham apenas um papel
secundário nessas mudanças. A inexorável evolução histórica obriga o homem –
independentemente de sua vontade – a pensar e agir de acordo com os padrões
correspondentes à sua época. Os homens se iludem ao acreditar que são livres
para escolher entre várias ideias ou entre o que pensam ser certo e errado. Os
homens em si não pensam; é o determinismo histórico que se manifesta através de
seus pensamentos.
Isto é simplesmente uma doutrina mística, que se apoia apenas na dialética
hegeliana: a propriedade privada capitalista é a primeira negação da propriedade
privada individual; provoca, com a inexorabilidade de uma lei da natureza, a sua
própria negação, qual seja, a propriedade pública dos meios de produção.64 É claro
que uma doutrina mística, baseada na intuição, não deixa de ser mística por se
apoiar em outra doutrina igualmente mística. Este artifício, de forma alguma,
explica por que um pensador tem que necessariamente formular ideologias que
atendam aos interesses de sua classe. Admitamos, só para argumentar, que o
homem formule doutrinas benéficas aos seus interesses. Mas, será que o interesse
de um homem coincide sempre com o interesse de toda a sua classe? O próprio
Marx teve de admitir que a organização do proletariado como classe e,
consequentemente, como partido político, foi continuamente perturbada por
conflitos entre os próprios trabalhadores.65 É fato inegável que existem conflitos
de interesses irreconciliáveis entre os trabalhadores que recebem salários obtidos
pelos sindicatos e os trabalhadores que permanecem desempregados porque a
obrigação de pagar os salários obtidos por pressão sindical impede que haja
demanda para atender a toda a oferta de mão de obra. Também não se pode
negar que os trabalhadores de países relativamente mais populosos e os de países
menos populosos têm interesses nitidamente antagônicos em relação às leis de
imigração. A declaração de que a substituição do capitalismo pelo socialismo é do
interesse de todos os proletários não passa de afirmativa arbitrária de Marx e de
outros socialistas. Não pode ser provada pela mera alegação de que a ideia
socialista é a emanação do pensamento proletário e, portanto, certamente
benéfica aos interesses do proletariado.
Com base nas ideias de Sismondi, Frederick List, Marx e da Escola Historicista
Alemã, foi elaborada, e teve grande aceitação, a seguinte interpretação acerca das
vicissitudes do comércio exterior britânico: na segunda metade do século XVIII e na
maior parte do século XIX, era conveniente aos interesses da burguesia inglesa
uma política de livre comércio. Como consequências disso, os economistas ingleses
elaboraram uma doutrina do livre comércio e os empresários organizaram um
movimento popular que, finalmente, conseguiu abolir as tarifas protecionistas. Mais
tarde, mudaram as condições: a burguesia inglesa, já não podendo suportar a
competição dos produtos estrangeiros, passou a exigir tarifas protecionistas. Os
economistas, então, elaboraram uma teoria protecionista para substituir a
ideologia do livre comércio e a Inglaterra retornou ao protecionismo.
O primeiro erro dessa interpretação é considerar a “burguesia” como uma classe
homogênea composta de membros cujos interesses são os mesmos. Um
empresário está sempre premido pela necessidade de ajustar sua atividade
empresarial e comercial às condições institucionais de seu país. Sua atuação como
empresário ou como capitalista, em longo prazo, não é favorecida nem prejudicada
pela existência ou não de tarifas. Quaisquer que sejam as condições institucionais
ou de mercado, o empresário procurará produzir os produtos que lhe proporcionam
maior lucro. O que pode prejudicar ou favorecer seus interesses, em curto prazo,
são apenas as mudanças no cenário institucional. Mas estas mudanças não afetam
da mesma maneira, nem com a mesma intensidade, todos os ramos de negócio ou
todas as empresas. Uma medida que beneficia um setor ou uma empresa pode ser
prejudicial a outros setores ou empresas. Quando são estabelecidos direitos
alfandegários, apenas um reduzido número de itens pode interessar a cada
empresário. E, para cada item, os interesses das diversas firmas e setores são
geralmente antagônicos.
Um determinado setor ou empresa pode ser favorecido pelos privilégios
concedidos pelo governo. Mas, se os mesmos privilégios são concedidos a todos os
setores e empresas, todo empresário perde – não só como consumidor, mas
também como comprador de matérias primas, produtos quase acabados, máquinas
e equipamentos – de um lado, tanto quanto ganha de outro. O interesse egoísta de
um indivíduo pode levá-lo a solicitar proteção para seu próprio setor ou empresa.
Mas não pode motivá-lo a solicitar proteção generalizada para todos os setores ou
empresas, se não estiver certo de que será mais protegido do que todas as outras
atividades.
Os industriais ingleses, do ponto de vista dos interesses de sua classe, não
estavam mais interessados do que os demais cidadãos ingleses na revogação das
Corn Laws.66 Os proprietários de terra se opunham à revogação dessas leis,
porque uma diminuição nos preços dos produtos agrícolas reduziria o valor do
aluguel da terra. Um interesse que seja comum a todos os industriais só pode ser
concebido com base na já ultrapassada lei de ferro dos salários ou na não menos
insustentável doutrina que estabelece serem os lucros o resultado da exploração
dos trabalhadores.
Num mundo organizado com base na divisão do trabalho, qualquer mudança
afeta, de alguma maneira, os interesses imediatos de muitos setores. Por isso, é
sempre fácil rejeitar uma doutrina que proponha alterações nas condições
existentes, acusando-a de ser um disfarce “ideológico” dos interesses de um
determinado grupo. Este tipo de acusação tem sido a principal atitude de muitos
escritores contemporâneos. Não foi Marx o primeiro a assim proceder; antes dele,
outros já haviam adotado tal procedimento.
Neste sentido, cabe recordar as tentativas de alguns escritores do século XVIII de
qualificar os credos religiosos como uma maneira de os sacerdotes iludirem
fraudulentamente as pessoas, com o objetivo de aumentar o poder e a riqueza,
tanto para si, como para seus aliados, os exploradores. Os marxistas endossaram
esta afirmativa, ao qualificar a religião como “ópio das massas”.67 Nunca ocorreu
aos defensores dessas ideias que, onde existem interesses egoístas a favor, deve
necessariamente haver também interesses egoístas contra. O fato de
simplesmente proclamar que um evento favorece os interesses de uma
determinada classe não pode ser aceito como explicação satisfatória para a
realização desse evento. O que se faz necessário é procurar saber por que o resto
da população, cujos interesses foram prejudicados, não conseguiu frustrar os
esforços daqueles a quem tal evento favorecia.
Qualquer firma e qualquer ramo de negócio tem interesse em aumentar as
vendas de seus produtos. Entretanto, em longo prazo, prevalece a tendência para
equalizar o retorno das várias atividades produtoras. Se a demanda para os
produtos de um determinado setor aumenta, fazendo crescer os seus lucros, novos
capitais se deslocarão para esse setor e a competição provocada pelos novos
investimentos fará diminuir os lucros. De forma alguma se pode afirmar que a
venda de produtos nocivos é mais lucrativa do que a venda de produtos saudáveis.
Se a produção de determinada mercadoria é considerada ilegal e aqueles que a
produzem correm o risco de serem processados, multados ou presos, seus lucros
deverão ser suficientemente altos para compensar os riscos incorridos. Este fato,
entretanto, não altera a taxa média de retorno dos produtores da mercadoria em
questão.
Os ricos, os proprietários das fábricas que já estão em operação, não têm um
interesse específico na manutenção do mercado livre. Embora não desejem que
suas fortunas sejam confiscadas ou expropriadas, são favoráveis a medidas que os
protejam de novos competidores. Aqueles que defendem a livre iniciativa e o livre
mercado não defendem os interesses dos que são ricos hoje. Ao contrário, querem
que seja aberta a possibilidade para homens desconhecidos – os empresários de
amanhã – usarem sua habilidade e engenho, proporcionando, desta forma, uma
vida mais agradável para as gerações vindouras. Querem que se mantenha aberto
o caminho para maior progresso econômico. São eles que formam a verdadeira
vanguarda do progresso.
As ideias a favor do livre comércio, que foram tão bem-sucedidas no século XIX,
estavam respaldadas pelas teorias dos economistas clássicos. O prestígio dessas
ideias era tão grande, que nada, nem mesmo os grupos cujos interesses eram
contrariados por elas, podia impedir que fossem apoiadas pela opinião pública e
que as medidas legislativas necessárias ao seu funcionamento fossem
promulgadas. São as ideias que fazem a história e não a história que faz as ideias.
É inútil argumentar com místicos e profetas. Eles baseiam suas afirmativas na
intuição e não são capazes de submetê-las ao exame racional. Os marxistas se
julgam dotados de uma voz interior que lhes revela o curso da história. Se existem
pessoas que não ouvem esta voz, isto é apenas uma evidência de que não fazem
parte do grupo dos eleitos. É uma insolência dessas pessoas, que vivem no mundo
das trevas, pretender contradizer os iluminados. Deviam, por uma questão de
decência, retirar-se para um canto e lá permanecerem caladas.
Não obstante, a ciência não pode deixar de examinar todas as questões, embora
seja óbvio que nunca conseguirá convencer aqueles que negam a supremacia da
razão. Para estabelecer, entre várias doutrinas antagônicas, qual é a certa e quais
são as erradas, a ciência não pode recorrer à intuição. É fato inegável que o
marxismo não é a única doutrina existente. Existem outras “ideologias” além do
marxismo. Os marxistas alegam que a aplicação dessas outras doutrinas seria
prejudicial à maioria. Mas os defensores dessas doutrinas dizem exatamente o
mesmo em relação ao marxismo.
Os marxistas consideram que só um autor de origem proletária pode elaborar
uma doutrina que não seja viciada pelos interesses da classe dominante. Mas,
quem é proletário? Certamente o doutor Marx, o industrial e “explorador” Engels e
Lênin, descendentes de famílias nobres, não eram de origem proletária. Por outro
lado, Hitler e Mussolini eram genuínos proletários que conheceram a pobreza
quando jovens. O conflito entre os bolcheviques e os mencheviques, ou entre Stálin
e Trotsky, não pode ser considerado como conflito de classes. Foram conflitos entre
seitas de fanáticos que se acusavam, uns aos outros, de traidores.
A essência da filosofia marxista consiste em proclamar: somos nós que temos
razão, porque somos os porta-vozes da nascente classe proletária; a argumentação
lógica não pode invalidar nossos ensinamentos, porque eles são inspirados no
poder supremo que determina o destino da humanidade. Nossos adversários erram,
porque lhes falta a intuição que guia o nosso pensamento; não podemos culpá-los
de, por pertencerem a outras classes, não serem dotados da genuína lógica
proletária e se tornarem vítimas de ideologias. O impenetrável desígnio da história,
que nos escolheu para a vitória, os condenou à derrota. O futuro nos pertence.

A ação humana- Ludwig Von MisesOnde histórias criam vida. Descubra agora