O papel das ideias

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A Razão Humana
A razão é o traço particular e característico do homem. Não é necessário, à
praxeologia, procurar saber se a razão é um instrumento adequado para a
percepção da verdade final e absoluta. A praxeologia lida com a razão apenas na
medida em que esta habilita o homem a agir.
Todos os objetos que são o substrato da sensação, percepção e observação
humanas também passam diante dos sentidos dos animais. Mas somente o homem
tem a faculdade de transformar estímulos sensoriais em observações e experiência.
E somente o homem pode ordenar suas várias observações e experiências num
sistema coerente.
O pensamento precede a ação. Pensar é deliberar sobre a ação antes de agir, e
refletir em seguida sobre a ação efetuada. Pensar e agir são inseparáveis. Toda
ação está sempre baseada numa ideia específica quanto a relações causais. Quem
pensa uma relação causal, pensa um teorema. Ação sem pensamento e prática
sem teoria são inimagináveis. O raciocínio pode ser falso e a teoria incorreta; mas
o pensamento e a teoria estão presentes em toda ação. Por outro lado, pensar
implica sempre imaginar uma futura ação. Mesmo quem pensa sobre uma teoria
pura pressupõe que a teoria é correta, isto é, que uma ação efetuada de acordo
com o seu conteúdo teria por resultado um efeito compatível com seus
ensinamentos. Para a lógica, o fato de esta ação ser factível ou não é irrelevante.
É sempre o indivíduo que pensa. A sociedade não pensa, da mesma forma que
não come nem bebe. A evolução do raciocínio humano, desde o pensamento
simples do homem primitivo até o pensamento mais sutil da ciência moderna,
ocorreu no seio da sociedade. Não obstante, o pensamento em si é uma façanha
individual. Existe ação conjunta, mas não pensamento conjunto. Existe apenas a
tradição, que preserva e transmite pensamentos a outros, como um estímulo para
sua reflexão. Entretanto, o homem não tem como se apropriar dos pensamentos de
seus precursores, a não ser repensando-os de novo. Só então, partindo da base dos
pensamentos de seus predecessores, terá condições de ir mais adiante. O principal
veículo da tradição é a palavra. O pensamento está ligado à palavra e vice-versa.
Os conceitos estão embutidos em termos. A linguagem é uma ferramenta do
pensamento, como também da ação na sociedade.
A história do pensamento e das ideias é um discurso transmitido de geração em geração. O pensamento de uma época se apoia no pensamento das épocas
anteriores. Sem esta ajuda, o progresso intelectual teria sido impossível. A
continuidade da evolução humana, semeando para a descendência e colhendo no
solo preparado e cultivado pelos ancestrais, se manifesta também na história da
ciência e das ideias. Herdamos dos nossos antepassados não apenas uma provisão
de vários tipos de bens que são a fonte de nossa riqueza material; herdamos
também ideias e pensamentos, teorias e tecnologias, às quais nosso pensamento
deve a sua produtividade.
Mas pensar é sempre uma manifestação individual.
2. Visão de mundo e ideologia
As teorias que orientam a ação são frequentemente imperfeitas e insatisfatórias.
Podem ser contraditórias e, portanto, inadequadas à ordenação em um sistema
amplo e coerente.
Se considerarmos como um conjunto coerente todas as teorias que guiam a
conduta de certos indivíduos ou grupos e tentarmos ordená-las tanto quanto
possível em um sistema, isto é, um corpo abrangente de conhecimento, pode-se
qualificar tal sistema de visão de mundo. Uma visão de mundo é, como teoria, uma
interpretação de todas as coisas e, como norma para ação, uma opinião quanto a
melhor maneira de diminuir o desconforto na medida do possível. Uma visão de
mundo, portanto, é, por um lado, uma explicação de todos os fenômenos e, por
outro, uma tecnologia, ambos os termos considerados no seu sentido mais amplo.
A religião, a metafísica e a filosofia almejam fornecer uma visão de mundo.
Interpretam o universo e aconselham aos homens uma maneira de agir.
O conceito de ideologia é menos amplo do que o de visão de mundo. Ao nos
referirmos à ideologia, temos em mente apenas a ação humana e a cooperação
social. Problemas decorrentes da metafísica, de dogmas religiosos ou das ciências
naturais, assim como das tecnologias que deles derivam, não são considerados.
Ideologia é o conjunto de todas as nossas doutrinas relativas à conduta individual e
às relações sociais. Tanto a visão de mundo como a ideologia vão além dos limites
impostos a um estudo, neutro e acadêmico, das coisas como são na realidade. Não
são apenas teorias científicas, mas também doutrinas acerca do que deveria ser,
isto é, acerca dos fins últimos que o homem deveria pretender atingir nas suas
preocupações terrenas.
O ascetismo ensina que o único meio de que o homem dispõe para remover a dor
e atingir a quietude plena, a alegria e a felicidade é a renúncia às preocupações
terrenas e mundanas. Não há salvação fora da renúncia ao bem estar material, da
aceitação passiva das adversidades da peregrinação terrestre e da dedicação exclusiva à preparação para a glória eterna. Entretanto, o número daqueles que
coerente e sistematicamente adotam os princípios do ascetismo é tão pequeno,
que não é fácil citar mais do que alguns poucos nomes. Parece que a passividade
completa recomendada pelo ascetismo contraria a natureza. A atração pela vida
triunfa. Os princípios ascéticos têm sido adulterados. Até os mais beatos eremitas,
contrariando seus princípios rígidos, fazem concessões à vida e às preocupações
terrenas. Mas, quando alguém considera um interesse material e substitui ideais
puramente vegetativos pelo reconhecimento da importância das coisas deste
mundo, por mais que esta atitude seja incompatível com as doutrinas que professa,
estará lançando uma ponte que o liga aos que aprovam a realização de fins
temporais. Ao fazê-lo, passa a ter algo em comum com todas as demais pessoas.
Sobre coisas que nem o raciocínio puro nem a experiência são capazes de
elucidar, o pensamento humano pode diferir tão radicalmente ao ponto impedir a
realização de qualquer acordo. Nesta esfera onde a livre fantasia da mente não
sofre restrição – nem do pensamento lógico, nem da experiência sensorial —, o
homem pode dar vazão à sua individualidade e à sua subjetividade. Nada é mais
pessoal do que as noções e imagens sobre a transcendência. Os termos da
linguagem são incapazes de transmitir o que é dito sobre o transcendente;
ninguém pode afirmar que aquele que escuta lhes atribui o mesmo sentido que
lhes é atribuído por aquele que fala. Em relação a coisas que estão além da
compreensão, não pode haver acordo. As guerras religiosas são as mais terríveis,
porque são empreendidas sem qualquer perspectiva de conciliação.
Mas, quando se trata de coisas terrenas, a afinidade natural de todos os homens
e a identidade das condições biológicas necessárias à preservação da vida entram
em cena. A maior produtividade da cooperação sob a divisão do trabalho torna a
sociedade o principal meio de que dispõe qualquer indivíduo para atingir seus
próprios fins, quaisquer que eles sejam. A manutenção da cooperação social e sua
progressiva intensificação tornam-se do interesse de todos. Qualquer visão de
mundo e qualquer ideologia que não estejam inteiramente e incondicionalmente
comprometidas com a prática do ascetismo e com a reclusão anacorética devem
prestar atenção ao fato de que a sociedade é o grande meio para atingir objetivos
temporais. Sendo assim, surge uma base comum da qual se deve partir para
resolver os problemas secundários e os detalhes da organização da sociedade. Por
mais que as várias ideologias sejam conflitantes entre si, estarão sempre de acordo
numa questão: a conveniência de se manter a vida em sociedade.
Este fato, às vezes, passa despercebido porque, ao lidar com filosofias e
ideologias, as pessoas se preocupam mais com o que essas doutrinas afirmam em
relação às coisas transcendentes e impenetráveis e menos com o que postulam em
relação às atividades terrenas. Entre as várias partes de um sistema ideológico,
frequentemente, existe um abismo intransponível. Para o agente homem, somente
os ensinamentos que resultam em preceitos de ação têm realmente importância, e não as doutrinas puramente acadêmicas, que não se aplicam no quadro da
cooperação social. Podemos deixar de considerar a filosofia do ascetismo como
consistente e inflexível, uma vez que tão rígido ascetismo resultaria,
necessariamente, na extinção de seus adeptos. Todas as outras ideologias, ao
admitirem a procedência das preocupações terrenas, são forçadas, em alguma
medida, a reconhecer o fato de que a divisão do trabalho é mais produtiva do que
o trabalho isolado. Reconhecem, portanto, a necessidade da cooperação social.
A praxeologia e a economia não têm condições de examinar os aspectos
transcendentes e metafísicos de qualquer doutrina. Mas, por outro lado, nenhum
apelo a dogmas e credos, religiosos ou metafísicos, pode invalidar os teoremas e
teorias relativos à cooperação social como elaborados pelo raciocínio praxeológico
correto. Se uma filosofia admite a necessidade de laços sociais entre os homens,
ela se coloca, quanto aos problemas de ação em sociedade, numa posição básica
da qual não se pode afastar apelando para convicções pessoais ou profissões de fé
insusceptíveis de um rigoroso exame pelos métodos racionais.
Este fato fundamental é frequentemente ignorado. As pessoas creem que
diferentes visões de mundo criam conflitos irreconciliáveis. Os antagonismos
básicos entre partidos comprometidos com diferentes visões de mundo não podem,
dizem essas pessoas, ser resolvidos pelo compromisso. Derivam das profundezas
da alma humana e são a expressão da comunhão inata do homem com as forças
sobrenaturais e eternas. Não pode haver, jamais, cooperação entre pessoas
separadas por diferentes visões de mundo.
Entretanto, se examinarmos os programas de todos os partidos – tanto os
programas habilmente elaborados e difundidos, como aqueles que os partidos
realmente adotam quando no poder —, podemos facilmente denunciar o caráter
falacioso dessa interpretação. Todos os partidos políticos de nossos dias têm por
objetivo o bem estar material e a prosperidade de seus adeptos. Prometem
proporcionar condições econômicas mais satisfatórias aos seus seguidores. Neste
particular, não há diferença entre a Igreja Católica Romana e as várias confissões
protestantes, quando se envolvem em questões sociais e políticas; nem entre o
cristianismo e as religiões não cristãs, ou entre os defensores da liberdade
econômica e as várias espécies de materialismo marxista, ou entre nacionalistas e
internacionalistas, ou entre racistas e amigos da paz internacional. É verdade que
muitos desses partidos acreditam que só poderão prosperar a expensas de outros
partidos e chegam a considerar a aniquilação ou a submissão de outros grupos
como condição necessária à prosperidade do seu grupo. Entretanto, o extermínio
ou a submissão de outros não é o objetivo final, mas um meio de atingir aquilo a
que visam como objetivo final o florescimento do seu próprio grupo. Se
percebessem que os seus próprios desígnios são inspirados por teorias espúrias que
não conduzirão aos resultados esperados, mudariam os seus programas.
As declarações pomposas que as pessoas fazem sobre coisas incognoscíveis e que transcendem o poder da mente humana, suas cosmologias, visões de mundo,
religiões, misticismos, metafísicas e fantasias conceituais, diferem bastante umas
das outras. Mas a essência prática de suas ideologias, isto é, seus ensinamentos
relativos aos fins a serem atingidos na vida terrena e os meios para consecução
desses fins, mostram muita semelhança. Existem, sem dúvida, diferenças e
antagonismos em relação tanto aos fins quanto aos meios. Entretanto, as
diferenças em relação a fins não são irreconciliáveis; não se opõem à cooperação e
ao ajuste amigável no campo da ação em sociedade. Na medida em que as
divergências sejam apenas de meios e modos, são de caráter técnico e, como tal,
passíveis de exame por métodos racionais. Quando, no calor de conflitos
partidários, uma das facções declara: “não podemos prosseguir nossas negociações
com você porque estamos diante de uma questão que afeta a nossa visão de
mundo; neste particular devemos ser inflexíveis e fiéis aos nossos princípios, haja o
que houver”, basta examinar o assunto mais detidamente para perceber que o
antagonismo não é tão sério como parece. De fato, para todos os partidos
comprometidos com a promoção do bem estar material das pessoas e, portanto,
em favor da cooperação social, questões de organização social e da condução da
ação em sociedade não são problemas de princípios fundamentais nem de visões
de mundo, mas apenas questões ideológicas. São problemas técnicos em relação
aos quais algum acordo é sempre possível. Nenhum partido preferiria,
deliberadamente, a desintegração social, a anarquia e o retorno ao barbarismo
primitivo a uma solução que custasse o sacrifício de algum aspecto ideológico.
Num programa partidário, estas questões técnicas têm, certamente, uma grande
importância. Um partido está comprometido com certos meios; recomenda certos
métodos de ação política e rejeita inteiramente todos os outros métodos e
políticas, por julgá-los inadequados. Um partido é um corpo que reúne homens
desejosos de empregar os mesmos meios de ação. O que diferencia os homens e
forma os partidos é a escolha dos meios. Portanto, para o partido como tal, os
meios escolhidos são essenciais. Um partido acaba, se a inutilidade dos meios que
recomenda se tornar evidente. Os líderes partidários, cujo prestígio e carreira
política estão ligados ao programa do partido, podem ter amplos motivos para
recusar a discussão aberta de seus princípios; podem atribuir-lhes o caráter de fins
últimos que não devem ser questionados por estarem baseados numa visão de
mundo. Mas para as pessoas em nome de quem os líderes partidários pretendem
agir, para os eleitores que eles desejam atrair e cujos votos cabalam, as coisas se
apresentam de outra maneira. Essas pessoas não fazem objeção a que se examine
cada ponto do programa partidário. Consideram tal programa apenas uma
recomendação de meios a serem usados para atingir seus próprios fins, qual seja o
bem estar na terra.
O que divide esses partidos que se dizem representativos de uma visão de
mundo, isto é, partidos comprometidos com decisões basicamente filosóficas sobre
os fins últimos, é apenas um desacordo aparente quanto aos fins últimos. Seus antagonismos se referem ou a crenças religiosas, ou a problemas de relações
internacionais, ou a problemas de propriedade dos meios de produção, ou a
problemas de organização política. Pode-se demonstrar que todas estas
controvérsias são concernentes a meios e não a fins últimos.
Comecemos pelos problemas da organização política de uma nação. Existem
defensores de um sistema democrático de governo, da monarquia hereditária, da
administração por uma autodenominada elite e de uma ditadura cesarista.117 É
verdade que esses programas frequentemente são recomendados por referência a
instituições divinas, a leis eternas do universo, à ordem natural, à inevitável
tendência da evolução histórica e a outros conceitos transcendentais. Tais
afirmativas não passam de ornamentos acidentais. Ao apelar aos eleitores, os
partidos apresentam outros argumentos. Querem mostrar que o sistema que
defendem será mais bem-sucedido do que o proposto por outros partidos na
realização dos fins visados pelos cidadãos. Enumeram os resultados benéficos
alcançados no passado ou em outros países; atacam o programa dos outros
partidos, relatando seus fracassos. Recorrem tanto ao raciocínio puro como à
interpretação da experiência histórica para demonstrar a superioridade de suas
propostas e a futilidade de seus adversários. O argumento principal é sempre: o
sistema político que defendemos os fará mais prósperos e mais felizes.
No campo da organização econômica da sociedade, existem os liberais – que
defendem a propriedade privada dos meios de produção —, os socialistas – que
defendem a propriedade pública dos meios de produção – e os intervencionistas –
que defendem um terceiro sistema que, no seu entender, está equidistante do
socialismo e do capitalismo. No entrechoque desses partidos também se discute
muito sobre questões filosóficas básicas. As pessoas falam da liberdade verdadeira,
de igualdade, de justiça social, dos direitos do indivíduo, de comunidade, de
solidariedade e de humanitarismo. Mas cada partido pretende demonstrar, pelo
raciocínio e por referências à experiência histórica, que só o sistema por ele
recomendado poderá tornar os cidadãos prósperos e felizes. Dizem ao povo que a
realização de um programa elevará o padrão de vida a um nível mais alto do que o
decorrente da adoção do programa de qualquer outro partido. Insistem na
conveniência e na utilidade de seus planos. É óbvio que não diferem um do outro
quanto aos fins, mas apenas quanto aos meios. Todos querem proporcionar o mais
elevado nível de bem estar para a maioria dos cidadãos.
Os nacionalistas asseguram que existem conflitos irreconciliáveis entre os
interesses de várias nações, mas que, por outro lado, os interesses de todos os
cidadãos na mesma nação podem ser harmonizados. Uma nação só pode prosperar
à custa de outras nações; o cidadão individual só pode passar bem se sua nação
floresce. Os liberais têm uma opinião diferente. Acreditam que os interesses das
várias nações se harmonizam tanto quanto os de vários grupos, classes e camadas
da população em uma mesma nação. Acreditam que a cooperação internacional pacífica é um meio, mais apropriado, do que o conflito para atingir o fim pretendido
tanto por eles como pelos nacionalistas: o bem estar de sua própria nação. Não
defendem a paz e o comércio livre para trair os interesses de sua própria nação em
favor de estrangeiros – como acusam os nacionalistas. Ao contrário, consideram a
paz e o comércio livre como o melhor meio de enriquecer a sua própria nação. O
que separa os partidários do livre comércio dos nacionalistas não são os fins, mas
os meios recomendados para atingir os fins comuns tanto a uns como aos outros.
As divergências relativas a credos religiosos não podem ser resolvidas por
métodos racionais. Os conflitos religiosos são de natureza implacável e
irreconciliável. Todavia, quando uma confissão religiosa se interessa pela ação
política e tenta lidar com os problemas da organização social, ela se obriga a levar
em conta preocupações terrenas, embora estas possam ser conflitantes com seus
dogmas e seus artigos de fé. Nenhuma religião, em suas atividades esotéricas,
jamais se aventurou a dizer francamente: a implantação de nossos planos de
organização social vos empobrecerá e reduzirá o vosso bem estar. Aqueles que
estão consistentemente comprometidos com uma vida de pobreza se retiram da
cena política e se refugiam na reclusão anacorética. Mas igrejas e confissões
religiosas que visam a angariar adeptos e a influenciar as atividades políticas e
sociais de seus seguidores estão adotando princípios de conduta seculares. Ao
lidarem com as questões da peregrinação terrestre do homem, são praticamente
iguais a qualquer outro partido político. Ao solicitar apoio, enfatizam, mais do que a
glória eterna, as vantagens materiais que prometem conseguir para os seus
companheiros de fé.
Somente uma visão de mundo cujos adeptos renunciassem a toda atividade
terrena, qualquer que ela fosse, poderia negligenciar a importância das
comunicações racionais que provam ser a cooperação social o grande meio para
atingir todos os objetivos do homem. Uma vez que o homem é um animal social
que só pode prosperar em sociedade, todas as ideologias são forçadas a
reconhecer a importância primordial da cooperação social. Necessariamente, visam
a mais satisfatória organização da sociedade e, necessariamente, aprovam a
preocupação do homem em aumentar o seu bem estar material. Portanto, todas as
ideologias se colocam sobre um mesmo terreno, que lhes é comum. O que as
distingue umas das outras não são as visões de mundo nem as questões
transcendentes insusceptíveis de um exame racional, mas sim os meios e caminhos
que escolhem. Tais antagonismos ideológicos podem ser meticulosamente
examinados pelos métodos científicos da praxeologia e da economia.
A luta contra o erro
Um exame crítico dos sistemas filosóficos elaborados pelos grandes pensadores
da humanidade tem frequentemente revelado fissuras e falhas na impressionante
estrutura desses corpos de pensamento universal, aparentemente consistentes e coerentes. Mesmo o gênio, ao delinear uma visão de mundo, nem sempre
consegue evitar contradições e silogismos falaciosos.
As ideologias aceitas pela opinião pública são ainda mais infestadas por essas
deficiências da mente humana. São, em sua maior parte, justaposições ecléticas de
ideias totalmente incompatíveis entre si. Não resistem a um exame lógico de seu
conteúdo. Suas inconsistências são irremediáveis e desafiam qualquer tentativa de
juntar suas várias partes num sistema de ideias compatíveis umas com as outras.
Alguns autores tentam justificar as contradições das ideologias universalmente
aceitas ao ressaltar as alegadas vantagens de um compromisso que, embora
insatisfatório do ponto de vista lógico, favoreça o funcionamento tranquilo das
relações inter-humanas. Referem-se à falácia muito popular contida na afirmação
de que a vida e a realidade são “ilógicas”; sustentam que um sistema contraditório
pode revelar sua conveniência ou, mesmo, sua verdade, por funcionar
satisfatoriamente; enquanto que um sistema logicamente consistente poderia
resultar num desastre. Não há necessidade de refutar novamente tais erros tão
populares. O pensamento lógico e a vida real não são órbitas distintas. A lógica é o
único meio de que o homem dispõe para dominar os problemas da realidade. O
que é contraditório em teoria é não menos contraditório na realidade. Nenhuma
inconsistência ideológica pode proporcionar uma solução satisfatória, ou seja, uma
solução para os problemas que os fatos da realidade nos apresentam. O único
efeito das ideologias contraditórias é esconder os problemas reais e,
consequentemente, impedir as pessoas de encontrarem a tempo a política
adequada para resolvê-los. As ideologias inconsistentes podem, às vezes, adotar a
eclosão de um conflito evidente. Mas certamente agravam os males que escondem
e tornam uma solução final mais difícil. Multiplicam as agonias, intensificam os
ódios e tornam impossível o ajuste pacífico. É um erro crasso considerar
contradições ideológicas como inofensivas ou mesmo benéficas.
O objetivo principal da praxeologia e da economia é substituir os credos
contraditórios do ecletismo popular por ideologias consistentes e corretas. Não há
outro meio de prevenir a desintegração social e de salvaguardar o constante
melhoramento das condições humanas, a não ser aquele que nos proporciona a
razão. Os homens devem tentar examinar a fundo todos os problemas que lhes
afetam até o ponto além do qual a mente humana não consegue avançar. Não
devem se conformar com quaisquer soluções transmitidas pelas gerações
anteriores, devem sempre questionar novamente toda teoria e todo teorema; não
devem jamais relaxar seus esforços para eliminar as ideias falsas e para encontrar
o melhor conhecimento possível. Devem lutar contra o erro, desmascarando as
doutrinas espúrias e divulgando a verdade.
Os problemas em questão são puramente de ordem intelectual e, como tal,
devem ser tratados. É desastroso deslocá-los para o plano moral e desembaraçarse dos partidários de ideologias rivais qualificando-os como vilãos. É inútil insistir na afirmação de que nossos propósitos são bons e os de nossos adversários são
maus. A questão a ser resolvida é, precisamente, o que deve ser considerado bom
ou mau. O dogmatismo rígido, peculiar aos grupos religiosos e aos marxistas,
resulta apenas num conflito irreconciliável. Condena de antemão todos os
dissidentes como malfeitores, põe em dúvida sua boa-fé, exige-lhes rendição
incondicional. Nenhuma cooperação social é possível onde prevaleça uma atitude
deste gênero.
Pior ainda é a propensão, bastante popular hoje em dia, para qualificar de
lunáticos os partidários de outras ideologias. Os psiquiatras não são capazes de
precisar a fronteira entre sanidade e insanidade. Seria absurdo o leigo pretender
interferir nesta questão fundamental da psiquiatria. Entretanto, é claro que, se o
simples fato de alguém defender opiniões erradas e conformar seus atos a esses
erros o caracteriza como doente mental seria difícil encontrar uma pessoa a quem
se pudesse atribuir o epíteto de são ou normal. Neste caso, teríamos que
considerar como loucas todas as gerações passadas, porque suas ideias sobre os
problemas das ciências naturais e, concomitantemente, suas técnicas eram
diferentes das nossas. As futuras gerações nos chamarão de loucos pela mesma
razão. O homem está sujeito ao erro. Se errar fosse o traço característico da
incapacidade mental, então todos deveriam ser considerados como mentalmente
incapazes.
O fato de um homem discordar da opinião da maioria de seus contemporâneos
não basta para qualificá-lo de lunático. Acaso eram loucos Copérnico, Galileu e
Lavoisier? É próprio do curso normal da história que o homem conceba novas
ideias, contrárias àquelas de outras pessoas. Algumas dessas ideias são, mais
tarde, incorporadas ao sistema de conhecimento considerado como verdadeiro pela
opinião pública. Seria admissível aplicar o epíteto “são” apenas às pessoas rústicas,
que nunca tiveram ideias próprias, e negá-lo a todos os inovadores?
O procedimento de alguns psiquiatras contemporâneos é verdadeiramente
ultrajante. São totalmente ignorantes das teorias da praxeologia e da economia.
Seu conhecimento das ideologias atuais é superficial e acrítico. Não obstante,
levianamente, chamam de paranoicos os partidários de outras ideologias.
Há pessoas que defendem zelosamente medidas monetárias não ortodoxas,
confiantes em que tais medidas farão com que todos prosperem. Seus planos são
ilusórios. Entretanto, são a aplicação consistente de uma ideologia monetária
inteiramente aprovada pela opinião pública contemporânea e adotada por quase
todos os governos. As objeções levantadas pelos economistas contra estes erros
ideológicos não são levadas em consideração pelos governos, pelos partidos
políticos e pela imprensa.
As pessoas não familiarizadas com a teoria econômica geralmente acreditam que
a expansão do crédito e o aumento na quantidade de dinheiro em circulação são meios eficazes para diminuir a taxa de juros e mantê-la abaixo do nível que
atingiria num mercado de capitais e empréstimos não manipulado. Esta teoria é
completamente ilusória.118 Não obstante, serve de guia à política monetária e
creditícia de quase todos os governos contemporâneos. Ora, com base nessa
ideologia defeituosa, não se podem objetar os planos preconizados por Pierre
Joseph Proudhon, Ernest Solvay, Clifford Hugh Douglas e uma legião de outros
aspirantes a reformadores. Eles são apenas mais consistentes do que outras
pessoas. Querem reduzir a taxa de juros a zero e, assim, abolir ao mesmo tempo a
escassez de “capital”. Quem quiser refutá-los terá de condenar as teorias
subjacentes às políticas monetárias e creditícias das grandes nações.
O psiquiatra poderia redarguir que o que caracteriza um homem como lunático é
precisamente a falta de moderação e a atitude extremista. Enquanto o homem
normal é judicioso o bastante para se controlar, o paranoico ultrapassa todos os
limites. Essa resposta não é satisfatória. Todos os argumentos usados em favor da
tese de que a taxa de juros pode ser reduzida, pela expansão creditícia, de 5 ou
4% para 3 ou 2%, são igualmente válidos para reduzi-la a zero. À luz das falácias
monetárias normalmente aceitas pela opinião pública, os monetaristas que
defendem medidas não ortodoxas estão certos.
Há psiquiatras que consideram lunáticos os alemães que esposaram os princípios
do nazismo, e pretendem curá-los por procedimentos terapêuticos. Estamos
novamente diante do mesmo problema. As doutrinas do nazismo são condenáveis,
mas na essência não diferem das ideias socialistas e nacionalistas aceitas pela
opinião pública de outros países. O que caracterizou os nazistas foi apenas a
aplicação consistente dessas ideologias à situação específica da Alemanha. Como
todas as outras nações da mesma época, os nazistas desejavam o controle
governamental da atividade econômica, bem como a autossuficiência, ou seja, a
autarquia econômica para seu próprio país. O traço característico de sua política foi
a recusa em aceitar as desvantagens que a adoção do mesmo sistema por outras
nações lhes imporia. Não estavam dispostos a ficarem eternamente “prisioneiros”,
como diziam numa área relativamente superpovoada, na qual as condições físicas
tornavam a produtividade do esforço humano menor do que em outras áreas.
Acreditavam que suas grandes cifras populacionais, a favorável posição geográfica
de seu país, do ponto de vista estratégico, e a proverbial vitalidade e bravura de
suas forças armadas lhes proporcionariam uma boa chance para remediar, pela
agressão, os males que deploravam.
Ora, quem aceita como verdadeira a ideologia do nacionalismo e do socialismo,
adotando-a como padrão para a política de sua própria nação, não está em
condições de refutar as conclusões que os nazistas delas extraíram. O único meio
de refutar o nazismo de que dispunham as nações que adotaram aqueles dois
princípios foi derrotar os nazistas numa guerra. E, enquanto a ideologia do
socialismo e do nacionalismo dominar a opinião pública mundial, os alemães ou tros povos tentarão de novo recorrer à agressão e à conquista, se acaso lhes
surgir uma nova oportunidade. Não há esperança de que a mentalidade agressiva
seja erradicada, se as falácias ideológicas que a condicionam não forem
inteiramente refutadas. Esta não é uma tarefa para psiquiatras, mas para
economistas.119
O homem só dispõe de um instrumento para combater o erro: a razão

A ação humana- Ludwig Von MisesOnde histórias criam vida. Descubra agora