As limitações dos conceitos praxeológicos

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As categorias e conceitos praxeológicos foram formulados para compreensão da
ação humana. Tornam-se contraditórios e sem sentido, se tentarmos aplicá-los a
circunstâncias diferentes das existentes na vida real. O ingênuo antropomorfismo
das religiões primitivas é inaceitável ao pensamento filosófico. Da mesma forma, é
igualmente questionável a pretensão de certos filósofos em definir, usando
conceitos praxeológicos, os atributos de um ser absoluto, livre de todas as
limitações e fraquezas do ser humano.
Os filósofos e teólogos escolásticos, e também os teístas e deístas do Iluminismo,
conceberam um ser absoluto e perfeito, eterno, onisciente e onipotente e que,
apesar disso, planejava e agia, objetivava atingir fins e empregava meios para
atingir esses fins. Ora, só age quem se considera em uma situação insatisfatória, e
só reitera a ação quem não é capaz de suprimir o seu desconforto de uma vez por
todas. Quem age está descontente com sua situação e, portanto, não é onipotente.
Se estivesse satisfeito, não agiria e se fosse onipotente, já teria, há muito tempo,
suprimido completamente a sua insatisfação. Um ser todo-poderoso não tem
necessidade de escolher entre várias situações de maior ou menor desconforto. A
onipotência pressupõe o poder de atingir qualquer objetivo e desfrutar a felicidade
plena, sem ser incomodado por quaisquer limitações. Mas isto é incompatível com
o próprio conceito de ação. Para um ser todo-poderoso, não existem as categorias
meios e fins. Está acima de qualquer percepção, conceitos ou compreensão que
sejam inerentes ao ser humano. Para um ser todo-poderoso, quaisquer “meios” lhe
permitem realizar tarefas ilimitadas; pode empregar todos os “meios” para atingir
qualquer fim ou pode atingir todos os fins sem empregar nenhum “meio”. Está
além da capacidade da mente humana lucubrar o conceito de onipotência até as
suas últimas consequências lógicas. Os paradoxos são insolúveis. Teria o ser todopoderoso
o poder de realizar algo que não lhe fosse possível modificar mais tarde?
Se tiver este poder, então existem limites à sua força e ele não é todo-poderoso;
se lhe falta este poder, só por este fato já não é todo-poderoso.
Acaso serão compatíveis a onipotência e a onisciência? A onisciência pressupõe
que todos os acontecimentos futuros já estão inalteravelmente determinados. Se
existe a onisciência, a onipotência é inconcebível. A impossibilidade de alterar o
predeterminado curso dos acontecimentos é uma restrição de poder incompatível
com o conceito de onipotência; são limitados o seu poder e o seu controle sobre os
fenômenos. A ação é uma manifestação do homem que está restringida pelos
limitados poderes de sua mente, pelas características fisiológicas de seu corpo,
pelas vicissitudes de seu meio ambiente e pela escassez de fatores dos quais
depende o seu bem estar. É inútil aludir às imperfeições e fraquezas do ser
humano, quando se pretende descrever um ente absolutamente perfeito. A própria
ideia de perfeição absoluta é, sob todos os aspectos, autocontraditória. O estado
de perfeição absoluta só pode ser concebido como algo completo, final e não
sujeito a qualquer mudança. A menor mudança poderia apenas reduzir sua
perfeição e transformá-lo num estado menos perfeito que o anterior; a simples
possibilidade de que ocorra uma mudança é incompatível com o conceito de
perfeição absoluta. Mas a ausência de mudança – isto é, a completa imobilidade,
imutabilidade e rigidez – são equivalentes à ausência de vida. A vida e a perfeição
são incompatíveis, como também o são a morte e a perfeição.
O ser vivo não é perfeito porque é passível de sofrer mudanças; o morto não é
perfeito porque lhe falta a vida.
A linguagem dos homens que vivem e agem utiliza formas comparativas e
superlativas ao comparar situações melhores ou piores. A noção de absoluto não
permite comparações; é uma noção limite. O absoluto é indeterminável,
impensável e inexprimível. É uma concepção quimérica. Não existe felicidade
plena, nem pessoas perfeitas, nem eterno bem estar. Qualquer tentativa para
descrever as condições de um País das Maravilhas ou a vida dos anjos resulta em
paradoxos insuperáveis. Em qualquer situação existem limitações e não perfeição;
existem tentativas de superar obstáculos, assim como frustração e
descontentamento.
Quando os filósofos já não se interessavam mais pelo absoluto, os utopistas
retomaram o tema, elaborando sonhos sobre o estado perfeito. Não percebem que
o estado, o aparato social de compulsão e coerção, é uma instituição criada para
lidar com a imperfeição humana, e que sua função essencial consiste em aplicar
punições em minorias, a fim de proteger as maiorias das consequências danosas de
certas ações. Com homens “perfeitos”, não haveria necessidade de compulsão e
coerção. Os utopistas, entretanto, não levam em consideração a natureza humana
nem as inexoráveis condições de vida humana. Godwin imaginava que o homem
pudesse tornar-se imortal quando fosse abolida a propriedade privada.51 Charles
Fourier tartamudeava sobre oceanos contendo limonada ao invés de água
salgada.52 O sistema econômico de Marx, cegamente, ignora a existência da
escassez material dos fatores de produção. Trotsky chegou a afirmar que no
paraíso proletário “o homem médio alcançará o nível intelectual de um Aristóteles,
de um Goethe ou de um Marx. E sobre estes cumes, novas alturas serão
alcançadas”.53
Atualmente, as quimeras mais populares são a estabilização e a segurança.
Analisaremos estes slogans mais adiante.

A ação humana- Ludwig Von MisesOnde histórias criam vida. Descubra agora