A luz da vela por cima da cômoda se move criando sombras na parede, e preciso forçar a vista para ver que horas são.
Três e vinte da manhã.
Faz dois anos que tenho insônia. Mas passar as madrugadas acordada já foi mais assustador, principalmente nos primeiros meses em que fiquei sozinha nesta casa.
Mesmo assim, todos os pensamentos e sentimentos ruins resolvem aparecer.
Saudade, medo, dor, solidão, desespero e raiva são apenas alguns deles.
E aqui estou eu de novo, rolando de um lado para o outro tentando adormecer, mesmo sabendo que não vou conseguir.
Fecho os olhos e penso no sonho que acabei de ter com o Lucas. A imagem do sorriso dele que continua nas minhas lembranças me acalma um pouco, mas não o suficiente para me fazer voltar a pegar no sono.
Desisto e me sento na beira da cama. Deito de novo quando o frio se torna desconfortável. Volto a sentar.
Depois de algum tempo fazendo isso, enrolo-me em uma manta, pego a vela que já está no fim e vou até a cozinha.
Aqueço um pouco de água e preparo um chá de camomila. Dizem que é bom para insônia, mas nunca me fez voltar a dormir.
Assim que fica pronto e dou o primeiro gole, lembro-me de quando minha mãe e eu fazíamos isso juntas. Ela se sentava à minha frente, e eu me via nos cabelos ruivos e nos olhos azuis dela, exatamente iguais aos meus.
A imagem se desfaz quando bebo o último gole do chá, que ironicamente me desperta.
Começo a fazer o caminho de volta para o quarto, mas quando passo pela geladeira, a luz da vela ilumina a notificação da Matriz.
Hoje é o dia da testagem para a Tômbola.
Todos os anos, onze pessoas, uma de cada Setor ganham o que todos querem: a Cura.
Por isso, todos os Setorianos que vão se tornar maiores de idade no próximo ano são obrigados a fornecer uma amostra de sangue para a Matriz.
Após várias análises, eles selecionam as pessoas com mais chance de terem um procedimento de Cura bem-sucedido, uma vez que a Matriz sempre afirma que nem todo mundo pode ser curado.
E essa Cura é diferente do antídoto que nos aplicam a cada vinte e um dias.
Ela é definitiva.
Mas não apenas isso.
Os onze escolhidos da Tômbola vão morar na Matriz, e a vida de dificuldades fica para trás.
Eles se tornam celebridades instantâneas, e durante um ano inteiro a vida deles é transmitida para a capital de Gaia, mostrando o que fazem, as festas a que vão, os jantares repletos de comida nos quais exibem suas roupas novas e caras...
Quase tudo é transmitido.
Aqui nos Setores, passa um resumo à noite com meia hora dos melhores momentos deles na Matriz, uma vez que somos explorados o suficiente para não termos tempo para mais do que isso.
Mas já é o suficiente para os Setorianos com idade para participar ansiarem serem escolhidos.
E apesar da ideia de ser curada ser atrativa, não quero correr o risco de ir para a Matriz!
Nunca abandonaria o Lucas para viver em um mundo de ostentações que ignora todas as privações que passamos aqui nos Setores. Nunca serviria de fantoche da Matriz, tendo minha vida exposta vinte e quatro horas por dia, mostrando todos os tipos de futilidades possíveis, como se as dificuldades diárias que enfrentamos não existissem.
Até consigo entender a indiferença dos Puros com as condições de vida dos Setorianos. Eles não as conhecem. E se conhecem na teoria, não fazem a mínima ideia do que é viver com um vírus no sangue ou passar por todos os tipos de privações.
Mas nunca entendi como pessoas que vivem a realidade dos Setores desde que nasceram, que são exploradas no trabalho só para conseguir comprar comida suficiente para não morrer de fome e para ter um teto por cima da cabeça, simplesmente chegam na Matriz e se esquecem de tudo, como se o passado delas nunca tivesse existido.
De qualquer forma, infelizmente, apesar de não querer, sou obrigada a participar.
E como sou órfã, se acharem que o procedimento de Cura seria bem-sucedido, tenho duas vezes mais chances de ganhar o sorteio do que quem ainda tem os pais nos Setores. E depois do teste genético, quando descobrirem que tenho imunodeficiência primária, minhas chances duplicam.
Além disso, o fato de ser emancipada, trabalhar e ser uma aluna acima da média também contam de forma positiva no processo.
Se eu quisesse ir para a Matriz, não reclamaria de ter esses pontos ao meu favor, mas, felizmente, nem tudo está perdido.
Anna consegue fraudar o sistema.
No ano de testagem do Lucas, ela foi convocada para fazer parte da equipe de coleta. Assim, ela teve acesso e invalidou as amostras do sangue dele. A Matriz não faz nova coleta nesses casos, ou seja, se a amostra não estiver de acordo com os critérios estabelecidos, por exemplo, se a quantidade de sangue não for suficiente para a análise, eles simplesmente excluem o candidato.
Claro, é arriscado, pode não dar certo.
E apesar de não querer colocar a Anna nessa posição mais uma vez, foi ela própria que se ofereceu quando recebeu a convocação para participar da coleta deste ano.
Lucas ainda pediu várias vezes para eu repensar minha decisão, mas acabou aceitando. E se a Anna conseguir, isso vai anular todas as minhas chances de ir para a Matriz.
Vai dar certo!
Tem que dar certo.
Só faltam algumas horas para a Testagem deste ano. E, daqui a uma semana, a Matriz virá buscar os escolhidos.
Sei que ficar acordada agora não é a melhor opção, mas tentar voltar a dormir e não conseguir só me faria sentir mais ansiedade.
Por isso, no corredor, abro a porta do quarto da minha mãe. Estendo o braço com a vela para iluminar um pouco o ambiente e é reconfortante ver que tudo continua exatamente como ela deixou.
Dou um suspiro longo por saber que nem ela nem meu pai vão voltar, mas aqui não me sinto tão sozinha.
Pego o livro que está na cadeira ao lado da janela.
Apesar de restritos nos Setores, meu pai sempre conseguia um para me dar de aniversário desde que aprendi a ler.
Tenho poucos. Por isso, sei quase todos os diálogos decorados.
Mesmo assim, relê-los me distrai, e decido fazer isso até de manhã.
Abro-o e vejo a letra do meu pai em tinta azul.
Os livros ajudam você a fugir da realidade... ou a mudá-la. Eles sempre serão sua melhor companhia.
Dou um suspiro longo.
Às vezes, eles são minha única companhia.
Dançando lentamente em um quarto vazio
Será que a solidão pode tomar o seu lugar?
Eu canto uma tranquila canção de ninar para mim mesma
Esqueço você e deixo a solidão entrar
Para consumir meu coração de novo
(The Lonely | Christina Perri)E tudo começou a mudar...
Amanhã teremos capítulo TODO novo!
Quem aí ficou com vontade de dar um livro de presente pra Emily?
Até amanhã!
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A Resistência | À Beira do Caos (Livro 1)
Science FictionSerá retirado do Wattpad nos próximos meses! Enemies to Lovers | Fake Dating 🏆 Wattys 2020 Gaia | 2121 Cem anos após a Terceira Guerra, Emily e Lucas ainda sofrem as consequências do confronto biológico e carregam no sangue um vírus mortal. Ela per...