I. Azul

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Ver as crianças da escola revira algum tipo de sentimento dentro de mim. Eu não sei o que é e nem o que significa, mas ultimamente nada vem fazendo sentido para mim, então esse é um dos meus menores problemas. Eu sequer me lembro de como morri, apenas lembro que do nada estava morto.

Quando você sonha, você não sabe o ponto de partida do sonho, apenas o seu fim — e é dessa forma que eu me sinto. Como nos sonhos, nós sabemos de algo sem ninguém ter nos contado, simplesmente sabemos. Nós apenas nunca sabemos quando ele vai acabar. Porém, minha morte não parece algo temporário que possa se comparar a sonhos.

É incrível que eu ainda lembre como é sonhar, talvez seja porque acabei invadindo o sono de alguns vivos acidentalmente. Mesmo que chegar à morte seja fácil, depois disso não é tão simples. Ninguém lhe apresenta seu novo estágio com um tour completo ou algum manual de instruções; você simplesmente morre e se vira como consegue.

Eu não lembro qual eram minhas crenças sobre a morte quando vivo, então não sei como devo pensar. Vagando pelo plano térreo só vejo especulações, como o Céu e o Inverno. Eles também dizem existir algo chamado Purgatório além de outra porção de suposições. A coisa engraçada é que eu não fui parar em nenhuma das opções. Eu continuo na Terra; morto, mas ainda estou aqui.

De acordo com as ideias dos vivos, os mortos geralmente se lembram de como foi sua morte e até chegam a dar uma passada em seu funeral. Ah, dizem que eles também se recordam de sua vida. Será que os vivos estão errados ou eu é que tenho um problema? Ninguém volta para contar, então é difícil escolher a teoria certa. Ou talvez eu seja como aqueles fantasmas que precisam fazer algo para se desgarrar do mundo físico. Poderia ser, mas, novamente, há o ponto: aqueles fantasmas se lembram de sua vida e sabem o que fazer — se essa teoria for real.

Cansado de tentar recordar de lembranças vazias, deixo de assistir à escola e começo a caminhar pelas calçadas, em passos muito mais que silenciosos. Caminho sempre em linha reta, não há motivos para me desviar dos obstáculos no meio de minha trajetória. É um pouco frustrante ser invisível para um mundo tão cheio de vida a minha volta. Mas eu estou morto, o que significa que não pertenço a este mundo "vivo".

Minha linha reta acaba quando chego à margem do Rio Willamette. Eu poderia continuar, mas algo me impede e não é a correnteza. Eu nunca passo daquelas águas e não sei o motivo, sempre acabo desviando-me dele. Desta vez não foi diferente, e sigo em direção de algo que conheço.

Eu não sei se quando vivo gostava de árvores, mas sempre me sinto melhor quando estou em algum parque da cidade. Atualmente, o meu favorito é o Forest Park. Várias pessoas praticam corrida lá e eu gosto de observá-las, tentar entender sua falta de fôlego ou por que suam depois de um tempo. Talvez, quando vivo, eu soubesse como essas funções trabalhavam. Mas atualmente tudo relacionado aos que vivem me fascina.

Os pinheiros do parque estão vestidos em mantos brancos feitos de neve. Se eu precisasse de um solo firme para me mover, seria difícil com toda aquela neve, e poderia "morrer de frio" como algumas pessoas dizem.

Frio. Não faço ideia de como é senti-lo, não sei se é bom ou ruim, pois cada vivo diz uma coisa diferente. Eu não tenho noção de nenhum sentimento físico. Às vezes tenho um pequeno vislumbre incerto nos sonhos que acabo invadindo. Mas é tão pouco que quase não faz efeito.

O que pode diminuir o frio de hoje é o sol, dizem que ele é quente. Calor, o contrário do frio. E novamente volto a pensar, é tão ruim estar em um lugar que você definitivamente não se encaixa.

— Saia da frente do sol, imbecil! — A exclamação é seguida de uma bola de neve que passa a alguns centímetros de mim.

Minha atenção se volta rapidamente para a dona da voz. Eu gosto de ouvir a conversa das pessoas, talvez alguma delas possam me revelar alguma coisa. Dois olhos grandes e azuis olham para mim com irritação. Instintivamente, olho para o lado oposto, mas não há ninguém atrás de mim.

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