VIII. Tess

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Quando Therasia disse que eu deveria fazer minhas coisas de fantasma enquanto ela fazia não sei o quê, eu a ouvi. Acontece que minhas coisas de morto se resumem a "observar os vivos", e agora estou na cozinha da casa Therasia. Eu não a vi por aqui, então com certeza ela não se importaria de eu observar seus pais.

— É seu dia de preparar o jantar hoje — a mãe de Therasia diz enquanto checa seus e-mails no laptop em cima da mesa.

— Não pode ser — o marido reclama enquanto olha para a geladeira, procurando por alguma coisa. — Eu fiz o café da manhã.

— Não deveria tê-lo feito — a mulher simplesmente responde, dando de ombros. — Era a vez de Therasia fazer o café hoje.

A divisão de tarefas na casa de Therasia é um pouco diferente das quais eu costumo ver por aí. Quero dizer, já vi em outras casas as pessoas se revessarem em lavar e secar a louça, mas aqui as coisas funcionam diferente. Aqui, tudo é planejado, cada um dos membros da família possuí um calendário para cada tarefa: quando cozinhar, quando lavar ou secar a louça. O mesmo ocorre na parte de limpar a casa. O sistema não funciona pelo simples fato de Therasia sempre encontrar um jeito de se livrar de suas tarefas. Tudo por aqui é sistematizado, tudo mesmo, e nunca funciona por causa dela.

A discussão esteve indo comumente até eu notar algo de diferente próximo ao pai de Therasia. Uma figura trêmula começa a surgir ali e já imagino quem possa a ser. É aquele mesmo fantasma, e ele sussurra ideias para o sr. North.

Não é injusto você sempre fazer tudo?, são algumas de suas palavras.

— Por que eu sempre tenho que fazer tudo nesta casa? — o homem verbaliza.

Posso ter enlouquecido, mas o fantasma parece ter gostado. Ele quer uma briga, ele gosta da energia que isso causa — o contrário de mim, que sempre me afasto de emoções ruins instintivamente. E a pior parte é que parece que ele pode fazer isso.

Quem a elegeu líder aqui?, o morto continua atiçando.

Decido tomar uma atitude mediante às ideias desse cara. Direciono-me até ele com o objetivo de confrontá-lo, ignorando a mesa que atravesso. Por alguma razão eu sinto raiva também. Será que ele pode afetar até a mim? Eu poderia me preocupar com isso depois, pois algo me tira do transe raivoso. A xícara que estava a minha frente deslizou pela mesa até cair por causa do meu movimento.

Todos na sala ficam parados — inclusiva o fantasma encrenqueiro. Eu não sei se os pais de Therasia haviam se dado conta que a xícara se mexera sozinha, mas acredito que a raiva tenha ido embora.

Tsc, tsc. Olhe só o que ele fez!, o fantasma continua.

— Feliz? — a esposa diz. A energia ruim está voltando, o que me faz querer ir embora. — Eu não vou limpar isso.

Antes que o pai de Therasia possa responder, tento gritar:

— Parem, é uma discussão estúpida!

A energia se suaviza e logo os dois estão se desculpando um com o outro. O que é muito estranho. Isso me faz pensar se posso interferir na vida das pessoas. Será que eu poderia?

Procuro por aquele cara, mas ele já não está mais aqui. Eu não me importo para onde ele foi, já que agora sei que posso interferir no mundo físico com as próprias mãos e com palavras. Eu só preciso descobrir como fiz isso e então conseguir fazer mais coisas. Talvez eu até nem precisasse mais depender de um vivo para obter certas informações!

Antes que eu possa me animar o suficiente, ouço a porta da entrada bater e logo em seguida a televisão ser ligada. Os pais de Therasia, por outro lado, não parecem ter notado nada, e por isso decido ir até lá. Quem sabe ela já tenha superado a raiva.

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