VI. Ladrão

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Depois da escola, Therasia parece outra pessoa. Quero dizer, ela parece aquela garota do parque que eu havia inicialmente conhecido. Seu humor instável faz-me perguntar se ela tem algum tipo de transtorno. Vivos mudam de humor o tempo? Nunca fiquei observando o mesmo ser por muito para saber — meu último recorde havia sido três horas.

Quando chegamos à casa da garota, ela não faz o costumeiro caminho até as escadas. Desta vez, Therasia segue até outro cômodo. Eu a acompanho, sentando-me ao seu lado no sofá como se fosse uma ação comum de um vivo qualquer — forma como normalmente ajo, já que não tenho nem um outro modelo a seguir. Pensando bem, a parte mais estranha de todas as minhas estranhezas é eu nunca ter visto um outro fantasma.

— Se você é um fantasma, como está sentado aqui? — Therasia pergunta, pegando o controle remoto da TV. Obviamente, para ela minha ação não foi nem um pouco costumeira. Talvez nesses programas sobre fantasmas nunca tenham mostrado uma alma penada sentar-se em um sofá e assistir a programas comuns como The Walking Dead ou Game of Thrones.

— Quem disse que eu estou no sofá? — falo passando a mão no assento sob mim, que simplesmente atravessa o móvel. Isso revela mais um fato esquisito sobre mim.

Por alguns segundos, só tenho como resposta uma cara interrogativa vinda da garota; nada além do esperado para um vivo que nunca havia mexido com o além.

— Então você está levitando? — ela inclina a cabeça, analisando-me de cima a baixo com alguma teoria estranha na mente. Logo volta sua atenção à televisão, desistindo de tentar entender alguma coisa. Decerto, todas as perguntas acerca de mim são tão confusas que nem devem precisar de alguma resposta, já que parecem impossíveis — o que de certo ângulo é verdade.

— Pode ser — concordo. — O mesmo acontece quando estou caminhando. Eu não piso no chão de verdade.

— Nunca havia pensando nisso — diz, distraída com a programação. Essa foi a prova de que ela não tentaria mais procurar por uma resposta.

Olho ao redor, analisando o cômodo pela primeira vez. Há alguns quadros de família como grande parte das casas familiares, objetos de decoração que lembram o passado — segundo os vivos, são coisas "antigas" — que se veem naqueles filmes tão antigos quanto, e mais ao fundo, uma estante cheia de alguma coisa. Na verdade, uma variada coleção dessa "coisa". Decido deixar Therasia e ir até a prateleira. Inicialmente penso em se tratar de várias revistas, mas não estou tão certo disso.

— O que é isso? — aponto para a estante de uma madeira bastante escura.

— Discos? — ela responde, levantando-se do sofá e caminhando até mim. Tira um item aleatoriamente e mostra o objeto circular fora de sua capa. Pela facilidade que ela segura, deve ser leve — de alguma forma aprendi sobre massa e peso, algo que eu acho que não tenho.

Dou mais uma olhada para os outros e percebo ser muitos, talvez CENTENAS deles! Meu espanto pode-se confundir com o de um vivo. Essa coisa de se impressionar com grandes quantidades e tamanhos é bem típico deles. Eu estou entre eles, e parecem ter me influenciado.

— Quantos discos têm aqui?

— Não sei — ela dá de ombros, recolocando o disco ao seu lugar entre os outros. — Uns mil? Meu pai ama essas coisas em vez de CDs e arquivos digitais.

Continuo a avaliar a coleção por um bom tempo até sentir que aquilo está me entediando. Eu já havia visto alguns discos antes, mas expostos de outra maneira. Talvez tenha sido em uma loja que vende esse tipo de coisa, porém parecia até ter menos que aqui.

Um ruído vindo das escadas chama minha atenção, e eu automaticamente olho para Therasia esperando por uma reação. Ela parece não estar preocupada com o mundo a sua volta e nem sequer ter ouvido algo. De qualquer forma, sigo na direção do som, intrigado. Se a garota viva não ouviu, ou foi muito baixo ou não é algo do mesmo plano que ela.

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