XII. Confuso

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— Você conseguiu alguma coisa útil com aquele garoto? — pergunto a Therasia. Eu sei que deveria ter feito a pergunta antes, mas preocupações costumam deixar minha memória pior do que ela já é. E é engraçado dizer algo do gênero quando o motivo dessas preocupações tem a ver com uma memória. Uma memória que me trouxe uma sensação um tanto estranha, por sinal. Já teve uma sensação de irrealidade onde você costuma duvidar de tudo o que lhe costumava ser inquestionavelmente real? Como se um dia o sol indubitavelmente existe, mas do nada, mesmo ele estando sempre ali, você começa a se perguntar se não passa de uma imaginação e nada faz mais sentido. Talvez o que eu esteja pensando é o que não faz sentido, mas é mais ou menos essa a explicação de como aquela "lembrança" me deixou.

— Que garoto? —, Therasia parece distante ao responder, como se ela nem estivesse aqui, prestando atenção em qualquer uma das minhas palavras. Pela resposta, eu acho que ela nem ouviu minha pergunta. A garota parece distraída com alguma ideia em sua mente que não consigo saber. Mesmo que em geral vivos sejam, de alguma forma, previsíveis, não sei o que esperar.

— Como assim "que garoto?"?! — Não tento esconder a leve irritação em minha voz, porque até os incapazes de ler mentes podem ter certeza de que ela sabe do que se trata. Aliás, eu estava bem ao lado dela quando aquele menino apareceu! — Aquele que interrompeu nossos planos de hoje: encontrar minha identidade!

Como resposta, só tenho Therasia me encarando sem expressão e em silêncio como se eu estivesse falando em outro idioma.

— É isso? — questiono a falta de resposta. — Não há mais nada para compartilhar comigo?

— O que você quer saber? — diz voltando a se sentar na cama e dando play no vídeo que estava assistindo antes de eu chegar. E com sarcasmo acrescenta: — Não pode simplesmente "ver" na minha mente?

— Você está falando sério? — Qual será a sensação de agredir alguém? Não sei como funciona essa coisa de expressar emoções de forma física, mas parece que Therasia me faz querer descobrir as piores delas agora. — O que você acha que eu quero saber?!

Ela nem pensa em continuar o assunto, distraída com o vídeo, apenas dá de ombros e logo muda de assunto:

— Você não estaria interessado em ir à escola comigo segunda-feira?

— E por quê, exatamente? Na maioria das vezes você quer que eu fique longe, já que eu sou um fantasma lerdo e irritante. Ah, e idiota também — palavras absolutamente suas. Supostamente não tenho uma memória invejável, mas ainda me recordo de todos os adjetivos que você me atribuiu.

— Teste de Matemática — menciona, como se eu nem tivesse contestado. Na verdade ela nem se dá o trabalho de olhar para mim. — Você me diz o raciocínio dos outros e a partir deles, faço o meu.

— Suas estratégias de trapaça são muito criativas, Therasia, mas por que você não estuda como os outros?

— Não estou a fim. — E depois disso não diz mais nada.

Eu fico alguns minutos parado aqui pensando se vale a pena persistir no assunto inicial do garoto, mas concluo que talvez mais tarde eu consiga alguma coisa. Enquanto isso, Therasia ignora minha presença eficientemente. Quero dizer, ela vê mais uns doze vídeos em sequência sem nem tirar os olhos da tela do laptop. Suponho que essa é a forma de Therasia ignorar o mundo: assistindo. Alguns leem, alguns ouvem música, alguns se drogam, Therasia assiste a todos os tipos de programação possíveis. Isso me parece um pouco deprimente, mas acho que minha situação é mais deprimente ainda: morri, mas continuo neste mundo do qual os vivos tentam fugir!

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