III. Memorial

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A garota dos cabelos azuis sai de um café aleatório da cidade, deslocada no meio dos adultos. Muitos a olham pelo canto dos olhos e pensam, Ela não devia estar na escola? Mas Therasia não parece dar atenção a eles, ela parece muito mais preocupada com seus bolinhos e o copo de chocolate quente em sua mão. Vez ou outra, eu escuto seus pensamentos dizendo como aquilo é bom. Eu queria poder sentir o gosto das coisas também e entender o que há de tão maravilhoso nelas.

Desde o momento que ela pisou na cidade até sua saída do café, não falou comigo. Talvez esta seja a melhor atitude a se tomar, já que os vivos nunca esperam encontrar outros vivos que falem com o invisível. Não com o nada, mas com algo que eles não consigam ver.

Após Therasia terminar seus bolinhos e descartar o lixo, ficando apenas com meio copo de chocolate quente, recomeça sua corrida pelas ruas frias da cidade. Apenas a acompanho, tentando entender o que ela pretende fazer.

— Aonde você está indo? — pergunto, finalmente.

— Skyline — responde ofegante, dando o último gole em seu chocolate.

Até encontrar uma lixeira, ela passa a caminhar lentamente. Uma vez que ela já está com as mãos livres, retorna a correr.

Eu apenas a sigo até um parque de poucas árvores e que está repleto de estátuas, que provavelmente, representam figuras "celestiais". A neve cobre grande parte do chão, exceto umas placas que recobrem o gramado congelado. Dali podemos ver a cidade pequena e distante, e em decorrência da altitude, posso notar que o vento balança as árvores com mais força aqui. Talvez também esteja mais frio que no parque ou na cidade, mas a sensação da ventania é quase inexistente para mim. Ou talvez seja.

— O que estamos fazendo aqui?

— Encontrando seu cadáver — ela responde, revirando os olhos.

Encaro o cenário a nossa volta, ainda confuso.

— Por que aqui?

— Eu pensei que você tivesse morado aqui e soubesse o que o Skyline é — fala passando os olhos pelo tapete de neve. — Estamos entre jardins memoriais. Vamos dar uma olhada nas lápides. — E corre na direção de uma das placas que se espalham pelo jardim congelado.

Então as placas são lápides. Mesmo me lembrando pouco de minha vida, eu tenho certeza que já estive em cemitérios e sei o que são lápides, mas é estranho não as ter reconhecido com a mesma capacidade que Therasia. Será que nada quer que eu me lembre da minha vida? Algo não quer deixar minha morte mais aparente? Ou há alguma coisa não querendo minha salvação? E salvação existe?

— Você realmente era um garoto?

— O quê? — Aproximo-me dela.

— Se a reposta for sim, acho que seu nome não era Edith Rivers. — E deixa a lápide que analisava, seguindo para a próxima. Acredito que ela já esteja familiarizada com o lugar, já que sabe onde encontrar os nomes que começam com "Ed".

— Com que frequência você vem até aqui? Parece conhecer bem o lugar.

— A companhia dos mortos é agradável, mas não é o meu lugar favorito — diz se aproximando de um círculo de colunas dóricas. — Grande parte de minha família está aqui, então sempre venho obrigatoriamente a este jardim. Minha mãe, todo mês, visita o corpo da vovó. Não faz muito tempo que ela morreu, então mamãe não superou ainda. — Ela dá de ombros e começa a correr pelo conjunto de flocos de neves, passando brevemente os olhos pelo nome das pedras tumulares do jardim.

Eu nunca pensei em encontrar meu corpo. Quero dizer, eu nunca cheguei a pensar nele nesse período em que estive vagando desnorteadamente entre os vivos. Eu nunca cheguei a pensar se alguém visita meu túmulo ou deixa flores  algo que não vai fazer muita diferença para mim. Eu jamais pensei nisso porque sempre estou entre vivos que não tem um caixão para se preocupar, pois seus corpos ainda respiram e seus corações batem. Além disso tudo, eles têm — a maioria deles tem — uma memória estável.

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