Os tênis brancos de Therasia — agora já não tão brancos — chapinham na grama úmida e amarela do cemitério alguns passos a frente de mim e Jay, enquanto avançamos cada vez mais adentro dos portões. O cemitério a primeira vista não aparenta diferir dos demais, só mais um labirinto de lápides e árvores se não fosse sua importância histórica, segundo Therasia, e o fato de meu corpo estar por aqui. O céu esteve cinzento desde que amanheceu como complemento do cenário de filme de terror, e não acredito que teremos a chance de ver o sol ainda hoje. Embora haja o risco de chover, Jay não vê isso como algo negativo, disse que se estivesse nevando como semana passada seria pior, o cemitério ainda estaria fechado para visitas e teríamos que esperar mais um pouco.
Mesmo já não estando tão interessado nesses que respiram, ainda preciso deles e, felizmente, desde que estamos aqui, Therasia e Jay deixaram de me ignorar (um pouco, acho). Vejo essa atenção recebida como uma oportunidade para perguntar qual é exatamente o objetivo em procurar meu túmulo. Quero dizer, se eu morri, é claro que fizeram alguma coisa com meu corpo, mas reencontrá-lo agora faria diferença? Na mente de Therasia não faz, ela meio que não dá a mínima para quase nada aqui — o que não me surpreende —; no entanto, Jay, por outro lado, pensa que se eu revir o maior número de "coisas" da minha vida talvez eu me lembre dela e, se tiver sorte, acabe com tudo isso de uma vez (não precisamente nessas palavras).
No momento ele está falando sobre qualquer outra coisa, pois é hábil em conseguir ligar um assunto ao outro bem rápido, o problema é só que eu não me dou mais o trabalho de prestar atenção. Talvez isso soe horrível, mas o garoto tem essa necessidade de manter a boca sempre aberta, e eu mais nenhuma paciência. Eu não sinto mais curiosidade sobre nada, e provavelmente a sensação de confinamento é a única que me sobrou. Só me sinto cada vez mais morto, definitivamente.
— Por que está me ajudando? — interrompo seja o que for que ele estivesse dizendo, sentindo-me imediatamente culpado por deixar a impaciência transparecer. O sentimento não dura, já que a sede de respostas é maior; e apesar de não dar muito a mínima ao que os vivos têm a dizer, é-me curioso Jay estar sendo tão, não sei, prestativo...? — Quero dizer... obrigado, mas é um pouco, sei lá, estranho.
— Gosto de ajudar — responde como se isso estivesse claro desde o início, indiferente ao meu tom um pouco rude.
— Simples assim, só por isso? — Embora não me reste mais paciência para conversas sem relevância, tenho de questionar. A ideia de que talvez ele possa ter me conhecido antes, em vida, e está escondendo essa parte surge em minha mente. Possuo várias dúvidas sobre tudo, não sei de quase nada, e por isso qualquer esperança minha ainda é mantida e perguntar não ofende, acho.
— Eu já fiz isso várias vezes; favores aos mortos, quero dizer — fala passando os olhos pela fileira de túmulos a seu lado, à direita, soando sincero, o que me obriga a aceitar que Jay é só mais uma pessoa aleatória que pode me ver de alguma maneira; não tão bem quanto Therasia me via, mas ainda consegue ver. Voltando-se para mim, muda, mais uma vez hoje, de assunto: — Fantasmas muitas vezes podem ser uma boa companhia quando não se tem nenhum vivo, sabe?
O garoto desvia o olhar na direção de Therasia, que está parada a alguns metros de nós encarando uma lápide com uma expressão interrogativa, e me pergunto se ele por acaso acha a presença dela tão morta quanto a minha é, apesar de ela nem estar em seus pensamentos no momento. Ele prossegue a conversa com outro tópico, e por isso guardo a suposição para mim. Tento me manter ouvindo o falatório como forma de distração.
Às vezes tenho a impressão de que vivos têm uma satisfação especial em discursar sobre si mesmos, e Jay não é muito diferente, além de seu contentamento "especial" em falar demasiadamente. Concluindo a partir do que diz, acho que talvez ele seja do tipo que eu definiria como um "extrovertido tímido"; não é bom socializando, receoso, mas não gosta nem um pouco de ficar sozinho. Quem sabe seja por isso que está me ajudando, está recebendo atenção minha e um pouco da de Therasia por um tempo e isso deve-lhe ser bom. Quero dizer, segundo ele, as pessoas não gostam muito de ser amigas de alguém que fala com os mortos, então esses mortos são seus únicos amigos agora.
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Ensoul
ParanormalO que aconteceria se um dia você acordasse e não conseguisse se lembrar de nada? Se apenas uma pessoa pudesse ajudá-lo? Esta é a história de Ed, um garoto que poderia ser normal - poderia. Mas ser amnésico e invisível nunca esteve na definição de...