XI. Memória

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Therasia não parece gostar de ser chamada de aberração, mas deixa suas reclamações guardadas em sua mente. Talvez ela esteja articulando alguma coisa para ter ignorado o comentário, pois demonstra um interesse estranho pelo garoto. Eu espero que Therasia tenha encontrado algo nele que possa nos ajudar de algum modo. Ou ela pode estar pensando em se livrar de mim jogando a responsabilidade para ele — não me seria uma surpresa.

Eles não param de falar, e mesmo que ambos possam me ver, estão me ignorando mais uma vez. E é um pouco desanimador ver que até o reflexo de uma vitrine me desconhece, pois nela, ali do outro lado da rua, só estão espelhados dois corpos e nenhum fantasma. Creio que o único modo do mundo dos vivos me notar de verdade é eu estando vivo também.

As vozes voltam. Aquelas vozes de crianças voltam. Talvez não sejam vozes, mas gritos de divertimento de pessoas muito mais que jovens. Olho para todos os lados, mas não há crianças em lugar nenhum. Por um instante não há, até que noto figuras quase indefinidas pela rua. O primeiro pensamento que me ocorre é que elas poderiam muito bem ser fantasmas também. Estariam elas me seguindo?

Dou uma olhada em Therasia e no garoto, mas nem um deles parece ter ouvido nada — e isso me faz questionar se as figuras são mesmo fantasmas. Como os dois vivos ao meu lado estão preocupados demais com sua discussão, deixo-os sem aviso e sigo na direção das vozes. Elas parecem correr de mim enquanto me aproximo. Não sei se estão fugindo ou tentando me levar a algum lugar, mas continuo atrás delas de qualquer forma.

Depois de várias quadras, acabo em um dos vários bosques da cidade. As figuras sem rosto continuam com seu riso infantil, sumindo entre as árvores. Fico parado na entrada do lugar, talvez eu devesse voltar e perguntar a Therasia se ela já havia obtido alguma coisa com aquele garoto. Ou talvez eu devesse ficar, as vozes poderiam ter algo de importante, pois eu poderia nunca mais voltar a encontrá-las.

Ed!, ouço antes que possa me decidir. São as vozes. Isso me motiva a segui-las.

Ed!, e quando finalmente estou mais adentro do bosque, não vejo mais as figuras indefinidas, e as vozes parecem vir de todas as direções.

Há um barulho vindo da trilha, de alguém caminhando, penso que possa ser alguma coisa importante, mas é só um passante vivo. A distração foi o bastante para eu perder as vozes. Elas não estão mais aqui. E essa é mais uma chance perdida na minha lista de fracassos.

Paro para avaliar o cenário em volta. É um bosque como qualquer outro — eu penso que é —; mas, ao mesmo tempo, é como se eu já tivesse passado por aqui, como se conhecesse bem o lugar. Eu ainda não me decidi se este sentimento de familiaridade acerca de coisas aleatórios me incomoda ou me anima.

Você já sentiu que nunca é o suficiente?, uma nova voz aparece, mas diferente das outras, essa é nítida e vagamente reconhecível. Dou uma olhada em volta, mas não parece haver ninguém na área. Há uma risada amarga, e a voz continua, é claro que não. Seria estupidez minha pensar que você é como eu.

É como se estivesse conversando com alguém, não necessariamente comigo, mas há uma pausa para uma resposta. Depois de alguns segundos, retorna, eu já me cansei de tudo, Ed. Eles não veem que sou uma pessoa também? Que nada do que eu vá fazer será perfeito?

Embora a frase tenha sido claramente direcionada a mim, não digo nada, apenas fico esperando que volte a falar alguma coisa. A parada desta vez leva um tempo maior, e quando a voz torna a falar, soa um pouco irritada, sabe qual é o pior de tudo? É que pensar em acabar com isso só me traz culpa. Eu não sei o que é pior: ser eternamente "o projeto perfeito que falhou" ou a culpa de querer desistir mesmo tendo sobrevivido — sem contar as consequências desta sobrevivência. Por que eu? Por que não ele... ou ela?

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