IV. Sonho

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— Você acha que há um motivo para ser a única a me ver? — pergunto enquanto deixamos o Memorial para trás.

— Deveria? — ela diz, despreocupada. — Eu poderia estar louca, ou simplesmente tive meus dons paranormais desenvolvidos agora.

Finjo não notar sarcasmo em sua última suposição.

— Dons? Então me diga por que você não enxerga outros mortos?

— Eu estou falando com um ser invisível, isso já é o suficiente.

Idiota, idiota, idiota, ela pensou. Fantasma lerdo irritante.

— É tocante saber que estou predominando em seus pensamentos — comento. — Mas é triste saber que é só com o intuito de me xingar.

Ela bufa, revirando os olhos.

— Não é você quem perdeu o sigilo da sua mente! — ela chuta um montinho de neve. — Por que você é tão irritante? Não é toa que o expulsaram do Céu... ou do Inferno.

— Therasia — ela estremece ao ouvir seu nome —, você sabe que eu nunca estive nesses lugares, se é que existem. Já esqueceu por que estou aqui, ao seu lado?

— Porque você não se lembra de quem é e precisa que alguém o ajude — resmunga. — O único problema é que parece que você está sempre me estudando. Eu não gosto disso, já é uma infelicidade saber que você ouve meus pensamentos.

Então a garota dos cabelos azuis não gosta de ser estudada? Deve ser por isso que ela nunca me responde decentemente. Mas não posso evitar, é a primeira que alguém pode me ver e eu realmente gostaria de entender o que está acontecendo. Infelizmente seus protestos não me impedirão correr atrás de respostas.

Continuamos seguindo em silêncio por vários passos.

— Você já me conheceu? Quero dizer, quando vivo.

— Eu não sei, Ed. Se já nos vimos, deve ter sido muito rápido, porque não lembro.

Há alguns minutos, lá no Memorial, ela parecia diferente. É como se ficasse mal-humorada de uma hora para a outra. É como se a perturbasse alguém tentar passar por sua muralha de pedra. Como se você pudesse fazer qualquer coisa a ela, menos tentar decifrá-la.

Decido ter uma conversa mais passiva com assuntos aleatórios e idiotas. Isso funciona até pararmos em frente de uma casa, lá pelas cinco e pouco da tarde. Therasia parece hesitante quando sobe os degraus até a porta e assim que entra na casa, a primeira coisa que vê é uma mulher com uma carranca. Pelas semelhanças físicas, penso que se trata da mãe dela.

— Por que não foi à escola hoje? — a mulher exige, zangada, com as mãos na cintura.

Therasia passa pela porta tranquilamente, ignorando a expressão de sua mãe.

— Não estava na hora — reponde, tirando o cachecol totalmente concentrada nessa ação. A maioria dos jovens fica preocupada quando seus pais ficam zangados, por que ela não?!

A expressão da mulher se suaviza, enquanto ela respira fundo.

— Você quase falhou no semestre passado, e seu pai não ficaria nem um pouco contente em saber que você faltou hoje.

Tirando o casaco, a filha faz uma careta.

— Quem se importa? — E passa pela mãe como se ela fosse invisível. Indo na direção das escadas, acrescenta: — Kyle faltou uma vez mês passado e ainda tem notas brilhantes.

Observando a garota dos cabelos azuis subir a escada dois degraus por vez, a mulher tenta contradizer:

— Kyle não...

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