V. Números

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Reconquistei Therasia com números. Mas levou um tempo.

Quando o céu já está claro, no começo da manhã, Therasia abre os olhos. Ela pisca incontáveis vezes. Seu rosto apresenta confusão, enquanto pensa profundamente em algo que não consigo decifrar. Seus pensamentos me veem distorcidos, como tentar ouvir palavras sendo ditas debaixo da água.

— Bom dia? — digo, tentando ser simpático. — Espero ter soado natural, já que a primeira vez que experimento cumprimentar alguém que pode me responder.

Os olhos confusos dela rapidamente se tornam surpreendidos, correndo em minha direção. Perplexidade está estampada em seu rosto, e não faço ideia do que ela fará em seguida.

— Maldição, você é real! — É a primeira coisa que exclama, encolhendo-se.

— É claro — replico. — Quando vai aceitar que não sou nem um tipo de alucinação?

— Não. Era para ser um sonho. Apenas um sonho. — Ela fecha os olhos e balança a cabeça negando. — Eu não posso estar maluca, e você não é um fantasma.

Acorde! Acorde! Acorde!, grita em seus pensamentos, desesperada por uma resposta racional.

— Nunca fui um sonho — contradigo, tanto suas palavras quanto seus pensamentos predominantes. — Eu sou tão real quanto você.

Ela abre os olhos com hesitação, um pouco mais calma agora.

— Como você entrou aqui? Ninguém o viu invadir a casa?

Tenho a impressão de que ela pensa que estou vivo como ela. Isso é estranho, pois ontem ela parecia ter aceitado muito bem o fato de eu ser um fantasma. Espere, talvez ela tenha considerado tudo normal pelo simples fato de achar que estava sonhando. Isso é um pouco decepcionante. Mas eu deveria esperar isso vindo dos vivos, afinal, eles têm medo do que desconhecem. E a morte é uma das coisas que eles mais temem e menos sabem a respeito.

— Você disse que me ajudaria a descobrir o que eu era — lembro-a, olhando brevemente para o laptop que está em cima da escrivaninha. — Você prometeu. E eu não posso cumprir o meu juramento se você não fizer o mesmo.

— Que juramento?

— Deixá-la depois de ser ajudado.

Ela pensa por longos segundos até olhar para os números digitais do rádio-relógio ao seu lado.

— Certo. Vou ver o que posso fazer se isso significar não ser mais incomodada por um morto. — A última palavra soa-me ácida. Não digo nada porque ela não parece estar aberta a brincadeiras hoje.

Após o café da manhã de Therasia — onde ela fingiu não me ver em nenhum momento —, saímos porta afora. Ela não tenta conversar e se limita a me responder apenas com resmungos. Depois de um tempo, desisto de tentar. Eu apenas queria saber por que ela não pode me encarar como ontem, como algo legal. Se fosse uma viva qualquer, eu até teria ignorado seu comportamento, mas isso é impossível quando Therasia é a única pessoa que pode me ver.

Hoje parte da neve já havia derretido, e também há uma garoa. Creio que até o dia seguinte não teríamos mais gelo pelas ruas. A garota dos cabelos azuis tem mais facilidade para caminhar e não dá atenção as gotículas de água vindas do céu. Pensar nisso me faz questionar qual é a sensação da chuva sobre mim.

Therasia! — Ouvimos uma voz atrás de nós, um pouco distante.

Therasia para e se vira, visivelmente irritada. Vejo que há alguém tentando alcançá-la, e quando ele está mais próximo, reconheço que é o mesmo garoto que eu havia visto ontem na sacada da casa vizinha. Ele está ofegante por conta da corrida, inspira e expira quando já está na frente da garota, parado.

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