XIV. Cadáver

94 12 30
                                    


Uma das poucas dúvidas que a notícia de Jay desfez foi aquela sobre eu realmente ter existido. Talvez eu realmente tenha tido aquele cachorro cujos latidos permanecem na minha memória, assim como aquela ideia de que tive uma mãe, ela também deve ser real; e com certeza não sou um delírio de Therasia nem estou preso dentro de um sonho meu como certa vez foi suposto. A notícia prova que eu estou bem morto, mas infelizmente não me responde por que continuo aqui neste mundo.

Tento usar as palavras de Jay como forma de encontrar alguma coisa em minha memória, conseguir a resposta por eu mesmo, mas ela continua vazia e eu sem nenhuma resposta. Imagino a cena de como morri que ele descreveu na tentativa de obter um resultado diferente e mesmo assim nada! Até porque não é uma lembrança, é só uma imaginação. Mas eu tinha esperança de que alcançaria alguma coisa. Amnésia em alguém sem um cérebro não faz muito sentido, mas às vezes eu me pergunto se alguma coisa a ver comigo faz.

Jay e Therasia estão discutindo sobre o porquê de eu ter sido atingido, se era simplesmente engano ou não, informação que eu pessoalmente não acho muito relevante.

Notando meu desapontamento, Jay muda bruscamente de assunto:

— Eu tenho mais uma coisa

O garoto começa a andar sem avisar ninguém, rapidamente sendo acompanhado de Therasia. Eles estão caminhando na direção da ponte mais próxima à direita, e eu não gosto nem um pouco do que eu acho que eles vão fazer. Na verdade não acho, pois a imagem nítida da ponte na mente de Jay confirma o que eu penso.

— Para onde estamos indo? — pergunto mesmo já tendo a resposta, mas nenhum dos dois parece ter me ouvido e tudo o que me resta é segui-los.

Aos poucos, a ponte fica cada vez mais próxima, e um medo estranho começa a crescer em mim. Medo de quê? Medo é para os vivos! E eu morri de uma distância considerável da ponte, qual seria o problema então? Independentemente do que for, acredito que possa me ajudar de alguma forma com minha falta de lembranças.

Mais alguns passos depois, a ponte está bem aqui. Therasia e Jay já estão pisando nela, enquanto eu fico parado a alguns metros apenas olhando. O problema não é exatamente a ponte, já que de fato eu nem preciso dela como os vivos para chegar ao outro lado do rio. Seria o problema o que tem depois da ponte, naquele lado da cidade? Quem sabe essa suposição faça sentido, já que nunca me senti tentado a ir até lá, nenhuma curiosidade. Chega a ser estranho eu nunca ter cogitado ir até o outro lado do rio.

Percebo que Therasia e Jay estão ficando cada vez mais distantes de mim e isso me força a finalmente alcançá-los. Tento manter a atenção nos dois vivos, concentrando-me apenas no meu objetivo de chegar até eles. Não estou totalmente distraído do medo, mas ajuda um pouco.

Quando me aproximo dos dois, já estamos na metade da ponte. Eles não estão conversando nem nada, só tendo pensamentos diferentes. Jay está pensando no percurso que faremos depois de atravessarmos a ponte, enquanto a mente de Therasia está apenas tentando lembrar qual é o seriado que passa na CBS nos domingos à noite. Em nenhum momento eu passo pela cabeça deles como pensamento predominante, o que me fez perguntar se eles se esqueceram da minha existência e que só estamos fazendo isso por MINHA causa.

— Para onde estamos indo? — peço mais uma vez, um pouco impaciente.

Jay se vira para mim como se só agora tivesse se dado conta da minha presença e fala:

— Então você não se lembra mesmo da sua vida? Tipo, nada mesmo?

— Eu na verdade acho que me lembro de algumas coisas, mas bem vagamente — respondo, embora me sinta incomodado pelo fato de ele ter ignorado minha pergunta pela SEGUNDA vez.

EnsoulOnde histórias criam vida. Descubra agora