Culpa

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— Um filme. — Falei levando a colher de sorvete a boca em meio a uma sorveteria próxima da escola.

— Romance. — Respondeu o diretor tentando adivinhar meu gênero favorito e eu o lancei aquele olhar vitorioso.

— Quase acertou. Comédia romântica. — Ele bufou em raiva e eu ri daquilo como nunca.

  Estávamos nos entrosando mais através de jogos para que nos conhecêssemos um pouco mais e descobrisse os dons de cada um.

— Comida favorita. — Disse ele e eu pensei.

— Essa é difícil de adivinhar... strogonoff? —  Respondi e ele fez expressão de surpresa.

— Como adivinhou? Eu sempre sou discreto! — Disse ele me fazendo rir ainda mais.

— Talvez nem tão discreto assim... vi você atacando a cantina um dia desses, sem contar que é o meu prato favorito também, fui na sorte. — Respondi e ele finalmente fez aquela cara de "agora tudo faz sentido".

  Até que realmente ter um momento com meu pai, era bom. Me fazia distanciar dos meus problemas, porém... Eu não tinha tanto tempo assim.

— Sei que combinamos não falar sobre assuntos da escola por hoje, mas... me disseram que o baile foi adiado. Aconteceu alguma coisa? — Perguntei e ele me encarou logo depois de elevar a colher de sorvete na boca.

— Nada para se preocupar. — Disse ele claramente mentindo.

— Você não me engana, Sr. Queen. — Ele fez expressão de desentendido. — Você levanta a sobrancelha sempre que mente. E eu também faço isso então... — Ele sorriu e eu também.

— O Conselho sabe sobre o que estamos enfrentando, e sabe sobre você. Forte negro está se aliando a ele. Tive de adiar o baile por conta... do que estamos prestes a enfrentar em breve.

— Do que está falando?

— Não viemos aqui para falar sobre isso, viemos?

  Me calei. Respirei fundo e encostei o copo de sorvete um pouco ao lado. Não dava mesmo pra ter uma conversa simples quando seu pai é o diretor da escola e um renegado do inferno.

  Senti que ele havia respirado fundo também. Acho que estava tentando não arruinar a primeira vez que temos uma conversa pacífica.

— Vamos mudar de assunto. Que tal você me falar um pouco mais sobre o Blake? — Sorriu curioso me fazendo ficar um pouco corada.

  Aquele era de longe o assunto que gostaria de ter com ele naquele momento.

— Ah... Ele é um pouco turrão, mas uma boa pessoa.

— Você não estava saindo com o Handriel Parker?

— Ah... Isso foi uma longa história. — Comecei a encher a boca com sorvete e já chamando a garçonete para que me trouxesse outro, estava sentindo um calor inimaginável ali. Seria nervosismo ou o verão chegou mais cedo? — Terminamos. Em resumo... E aí... b-bom, me aproximei do Blake. — Precisava de mais sorvete ou ia entrar em pânico.

  Ele começou a rir do meu nervosismo e aquela foi a primeira vez que o vi rir tão verdadeiramente de uma reação minha.

— Você é igualzinha a sua mãe. — Ele respondeu e eu sorri em retorno.

— Me conta mais sobre ela. Sobre como vocês se conheceram e chegaram até a mim? — Pedi chegando mais perto com a cadeira pra escutar sua história.

  O diretor parecia emocionado quando claramente se lembrava de tempos passados. Ele me encarou com um olhar gentil e cruzou as pernas pronto para começar a falar.

— Como você bem sabe. Eu já fui um anjo, era um líder celestial da ordem dos Serafins. Sua mãe, Ariel era acima de mim, uma arcanja. Ainda me lembro perfeitamente quando nos conhecemos pela primeira vez. Me encantei por ela no mesmo instante. No entanto, é e sempre foi estritamente proibido que anjos se envolvessem com outros anjos. Então nós nos afastamos por um longo período. As vezes eu a via de longe recebendo e entregando ordens. Ela estava tão linda... Aqueles cabelos prateados e aqueles pares de asas enormes que ela tinha. Tão perfeita que era muito difícil não se apaixonar. — Ele sorriu.

— Então você já gostava dela desde que era um Serafim?

— Sim. Quando decidi acompanhar Lúcifer em sua rebelião, ela foi a primeira a tentar me impedir e quase que implorar para que eu ficasse. Ela sabia que se eu fosse não haveria um retorno ou um perdão, mas Lúcifer era de certo modo minha responsabilidade. E mesmo que eu ficasse, seria torturante demais me apaixonar sem poder ter a minha amada em meus braços.

— Preferiu ir com Heilel do que ficar e sofrer por amor? — Ele fez que sim com a cabeça.

— Lá em cima as coisas são bem diferentes Rebecca. Não é como a terra. O livre arbítrio funciona de formas diferentes. — Seu olhar parecia de decepção. — Quando o criador me transformou no que eu sou hoje, confesso que demorei a acreditar. De asas brancas e suaves, passei a ter asas negras e ásperas. De olhos azuis passei as ter olhos arroxeados e negros. E minha forma demoníaca não é lá prazerosa de ser vista. — Ele respirou fundo enquanto a garçonete limpava nossa mesa e me trazia outro copo de sorvete. — Quando se passa certo tempo dentro do inferno, você começa a perder a sanidade. E foi o que aconteceu comigo. Acabei me tornando aquilo que mais temia. A gula. Me tornei o demônio representante do mal, braço direito de Heilel e infelizmente, o senhor das moscas, nome estranho não é? Não queira imaginar o que isso significa no mundo mágico. O fato é que não tive mais notícias de Ariel desde então...

  Refleti sobre aquilo. Realmente o entendia, passei 15 minutos no inferno e foi tempo o suficiente para nunca mais querer voltar. Imagina ele que esteve por lá desde a criação do homem.

— Me arrependi tanto de tudo o que fiz por Heilel. De tudo que sacrifiquei, porque não pensei duas vezes que assim que tive a oportunidade de abrir os portões do inferno, eu o fiz através da ajuda de Miguel. Depois de um tempo na terra, percebi que havia feito o pior dos meus arrependimentos...

— O que?

— Trouxe comigo os renegados do inferno. Por um momento me esqueci de quem eles haviam se tornado, e que alguns tinham a mesma mentalidade de Lúcifer. Ou pior. E então veio veio a guerra. Óbvio que os anjos não permitiriam que tais ameaças permanecessem na terra. E por mais que alguns dos renegados que vieram comigo fossem bons, ainda havia aqueles que não eram tão bons assim... E a guerra contra anjos e demônios fora travada. — Respondeu ele gesticulando gestos com as mãos. — Encontrei sua mãe alguns anos depois. A princípio mal conseguimos encarar um ao outro. Mas consegui me explicar a ela que entendeu meu lado por fim... demorou muito tempo para que enfim tivéssemos um momento de verdade. Para que finalmente nos entregássemos um ao outro... Foi então que ela veio até a mim desesperada me dizendo que o impossível havia acontecido.

  Franzi o cenho da testa.

— O que aconteceu?

— Você aconteceu. — Ele sorriu. — Ela me pediu desesperadamente para que eu te protegesse. Mas eu falhei nessa parte aparentemente.

— Não diga isso... — Disse para ele segurando em sua mão e dando um toque de surpresa em seu olhar. — Você me protegeu na mansão. Me protegeu me trazendo pra escola, e eu sei que você pediu Rachel para que ficasse de olho em mim na tumba. — Sorri. — Todos merecem uma segunda chance. Até você. — tirei minha mão lentamente e ele abriu um sorriso tímido antes de voltarmos a tomar o sorvete.


Renegados do Inferno - Destinada - vol 3 (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora