4 · Ela

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Ter fugido não me proporcionou uma vida melhor, mas tenho a certeza que me fez ter uma vida menos sofrida. O que passei não desejo a ninguém.
     Há noites em que não consigo dormir, é como se não tivesse passado 7 anos. Sinto ódio de mim, eu devia ter feito algo. Lembro que aquele cara que dizia que eu era a culpada. O que eu fiz para ter merecido isso afinal? Quanto a minha tia não entendo porque ela escolheu continuar com ele, era óbvio que ele não ia parar e por isso fugi.

Após morar em um abrigo voltei para as ruas ao completar 17 anos. Fiz amizades com algumas pessoas que me davam uma força até que eu encontrasse um trabalho. O tempo despertou em mim um lado que eu não conhecia.
— Tenho um trampo pra você hoje.
— Diz aí.
— Tem um senhor no bairro vizinho que fica sozinho no mercado, precisamos de uma distração enquanto limpamos o caixa. É aí que você entra fingindo estar passando mal na última seção do mercado.
— Eu já disse que não quero me envolver com roubo.
— E quer viver como? Não está vendo que ninguém liga para pessoas como nós? Somos lixo Maísa, apenas lixo.
— Vai ser jogo limpo?
— Ninguém vai estar armado, eu prometo.
— Fechado Pablo.

Quando chegamos no mercado o plano estava dando certo, até Pablo deixar uma frasqueira cair no chão. Olhei para o senhor que me ajudava e vi ele dizendo que ia ficar tudo bem. Meu coração ficou apertado quando o respondi.
— Não senhor, sou eu que digo que vai ficar tudo bem.
— Você está com ele moça?
— Senta aí mano, fica caladinho senão vou estourar sua cabeça. – minha fisionomia muda no instante que eu percebo que Pablo estava armado.
Só esperei até irmos para um local seguro.
— Tá me tirando mano? "Vai ser jogo limpo?" Eu perguntei, lembra?
— Só na sua mente que isso ia dar certo. Você acha que a gente ia estar com esse dinheiro agora, se eu não tivesse ido armado?
— Acha que eu tô me divertindo com isso é? Você ameaçou um senhor de idade, poderia ter atirado nele sem querer.
— Se você não ficar quietinha quem vai levar essa bala é você e ainda vai perder o dinheiro.

Respirei fundo e simplesmente agir. Quem esse palhaço acha que é? Saquei a arma da cintura dele e apontei pedindo que colocasse todo o dinheiro na minha bolsa.
— Muito bem, agora joga ela pra mim.
— Vai se arrepender Maísa.
— Já mandei jogar a porcaria da bolsa pra mim. – ele obedece furioso.
— Vai ter volta, fique atenta.
— Você encontra sua arma a dois quarteirões no lixão, palhaço!

Mais uma vez vou ter que sair desse lugar. Me pergunto pra onde vou com R$400. Ao sentar numa praça encontro uma moça lendo um jornal onde fala sobre vaga de emprego numa sorveteira, pedir o jornal emprestado e anotei os dados necessários. Era um bairro nobre Moema, já ouvi falar dizem que o comércio é forte, apesar de ser um pouco longe sei que lá terei boas oportunidades.

Quando cheguei fiquei encantada com tantas árvores. O bairro se divide em dois: de um lado, entre as avenidas Santo Amaro e Ibirapuera. As ruas cheias de bares, restaurantes, lojinhas, casas, prédios, e árvores, muitas árvores. Sem falar no canto dos pássaros, parecia que eu estava dentro de um filme. Acordei quando vir pássaros maiores voando. Aviões passava a todo instante.
       Algo me incomodava, era o jeito que as pessoas me olhavam. Eu tô um maltrapilho, tenho que descolar roupas bacanas. O dinheiro era tão pouco que não posso me dar o luxo de gastar. Eu não queria ter que fazer isso mas vai ser apenas um empréstimo para que eu consiga o emprego. Depois eu volto aqui e pago, eles nem vão perceber. Se bem que pela loja lotada eles devem ser cheio de dinheiro. Aproveitei que o vendedor estava no maior clima com a cliente e entrei no provador para vestir a roupa que escolhi. Era uma calça jeans, blusa branca, jaqueta preta e um gorro para esconder meu cabelo. Assim ninguém me reconheceria. Quando ia dar o fora escutei a conversa dos pombinhos. Não pude deixar de rir ao escutar ela perguntar se ele era gay, que pergunta sem noção. Antes que alguém viesse aqui de novo pulei a cabine. Pular os muros do orfanato serviu pra alguma coisa.

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