Capítulo dois

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         11 de abril de 1912

    Às treze horas e meia, o Titanic começou a sua travessia para chegar à Nova Iorque. Já há um dia que o navio não apresentava quaisquer problemas. Ismay tinha a certeza de que a viagem seria calma e um sucesso.
   Não entendia a insistência de outros para que colocassem vários botes dentro do navio. Ele pensava que aquilo ia diminuir a confiança dos passageiros. Sabia que os botes salva-vidas não eram suficientes, porém tinha a certeza que não seriam usados.
    — Vamos começar a navegação pelo oceano Atlântico, capitão! — Edwards encarou Smith, que estava concentrado virando a bombordo.
   — Com certeza!
   — O presidente tinha razão. Ocupamos bastante espaço no navio com os botes salva-vidas. O navio está em perfeitas condições. Já fomos para França, Irlanda e não houve nenhum problema.
    — Esperemos que continue assim até ao fim da viagem.
    — Assim será, capitão. Assim será!

                       ***

   Do outro lado do navio, estava Matthew com sua mãe e Dora. Seu pai mantinha conversa com famosos empresários da primeira classe e algumas celebridades, pois estava cheio delas no navio.
    Havia, inclusive, estrelas de cinema muito famosas e cantores de renome. A primeira classe, com certeza, era a melhor de todas.
   Lucy e Dora conversavam animadamente sobre roupas, deixando Matthew entediado. Era por causa daquilo que não achava Dora Smith interessante. Ela era como as outras, e ele sabia que sua mãe não ia deixá-la escapar.
    Sua mãe gostava de mulheres sofisticadas, bem vestidas, ricas e com um nome bastante influente. E Dora apresentava aquelas características.
   —... é a melhor loja da Inglaterra, mas não vamos esquecer de Paris. As roupas também são incríveis. — Lucy disse enquanto exibia o seu chapéu preto com flores brancas.
    — São divinais! Eu tenho um par de luvas compradas em Paris. Você vai querer ficar com elas. — Dora respondeu. — São as mais lindas que já vi até hoje.
   — Não me diga!
    Ambas riam deixando Matthew confuso. Ele não entendia daquelas coisas, por isso levantou-se e deixou as mulheres conversando. Não iam notar a sua ausência, pois sua conversa estava bastante empolgante.
   Pelos corredores, Matthew lembrou-se da mulher que tinha visto mais cedo quando o navio parou em Queenstown. Foi por isso que caminhou em direção aos compartimentos da terceira classe.
   De facto, a terceira classe era a menos organizada, a com menos qualidade nos serviços, mas era a classe com mais passageiros.
   Lucy tinha dito que os passageiros da terceira classe tinham problemas e doenças graves, não podiam chegar perto dos outros passageiros porque poderiam parar ao hospital ou no cemitério. Mas, como é óbvio, Matthew sabia que era um exagero.
   Ele não via problemas na convivência de pessoas pobres e pessoas ricas. Os da primeira e segunda classes não eram melhores que os da terceira por terem muito dinheiro. Ninguém era melhor que ninguém.
   Às escondidas, ele foi para a terceira classe. Havia muita gente lá, talvez umas três vezes maior que os da primeira classe. Era muita gente agrupada num só lugar. Seria difícil encontrar aquela mulher.
   Os passageiros da terceira classe usavam roupas velhas, alguns tinham roupas sujas e tinham muitas crianças muito magras. Sabia Matthew que aquela viagem era uma grande oportunidade para aquelas famílias recomeçarem.
   Ele olhava para o rosto de cada mulher que passava. Eram várias, eram lindas, contudo nenhuma se parecia com a mulher de cabelos compridos. Ele não a encontrava.
   Se ao menos soubesse seu nome...
    Ela poderia estar em qualquer lugar. Poderia estar no quarto, no salão, no convés, qualquer lugar, pois percebeu que ela era uma observadora curiosa.
   A bela menina não estava naquele salão, então Matthew desistiu de procurar por ela. Também não entendia porquê estava fazendo aquilo. Ele nem  conhecia aquela mulher.
  Todos os passageiros olhavam para ele por ser diferente. Era o único com roupas caras, cabelo impecável e sapatos novos e com brilho. Matthew apercebeu-se dos olhares e decidiu sair dali.
  Subiu nos compartimentos superiores e saiu pela porta até ao convés. Foi a primeira vez que esteve lá. Ainda não teve a oportunidade de explorar o navio como devia ser.
   O convés era enorme. Claro que era, pois Titanic era muito grande. E o melhor daquele lugar era a vista magnífica do oceano Atlântico.
   Ele observava o lugar um pouco distraído. O navio era uma obra de arte, era uma coisa incrível de se ver. Era um sonho para muitos que lá estavam.
  Matthew notou as pessoas no convés. Havia pessoas, mas não tantas, e uma delas era a mulher de cabelos compridos. Ela estava na proa observando o mar com um sorriso no rosto.
   Matthew não sabia se ia embora, se falava com ela ou se ignorava a sua presença. Ele ficou parado por minutos, perplexo.
    O que ele poderia fazer? Eles não se conheciam e não tinham nada para dizer um ao outro.
   Deu o primeiro passo e suspirou. Estava pensando se dava o segundo. Ele poderia simplesmente esquecer de tudo aquilo e voltar para o salão da primeira classe, onde estavam seus pais.
   Mas teria que ouvir sua mãe e Dora conversando sobre roupas horas e horas sem parar, depois sua mãe o obrigaria a ficar sozinho com a menina. Ele não queria aquilo.
   Deu o segundo passo. Ainda não encontrou um motivo para continuar com os seus passos, mas estava esperando que seu cérebro desse um sinal para parar com aquilo.
   Conhecer pessoas novas era bastante bom. Principalmente porque não conhecia ninguém no navio.
    Novas amizades, pensou consigo mesmo.
   Deu o terceiro passo, mas depois do quarto, não parou mais. Foi movido por algo desconhecido. Uma força estranha que o atraia como um imã.
   Quando percebeu, sua mão já estava por cima do ombro da linda mulher. Era tarde demais para recuar seus passos e ir embora. Ele tinha que continuar até ao fim.
   A bela menina virou-se e olhou para ele. Sua reação não era negativa, ela apenas estava surpresa por alguém rico tocar nela. A maioria das pessoas da primeira classe achavam que os imigrantes estavam contaminados, por isso foram isolados.
    Matthew ficou sem palavras por alguns segundos, mas recompôs-se imediatamente. Ele tirou a mão do ombro dela e colocou as mãos nos bolsos, parecendo descontraído.
    A jovem sorriu. — O senhor novamente!
    — Sim. Eu vim ver o mar e encontrei a senhorita. — Ele sorriu. — Percebo que gosta muito de oceanos.
    — Quem não gosta? — Ela olhou novamente para a grande extensão de água salgada.
    — Muita gente. — Ele aproximou-se mais ainda. — A senhorita sabe nadar?
   — Não, mas eu gostaria de aprender. Gostaria de nadar pelo mar o dia todo. — Ela olhou para Matthew com um brilho nos olhos.
   Ele riu-se. — Não é possível! Saiba que ficar demasiado tempo na água pode fazer mal e que no mar também há coisas más como tubarões, água-viva, piranhas e baleias assassinas.
    — O mundo também está cheio de pessoas cruéis e insensíveis, mas nós vivemos nele, não é? — Ela perguntou com um sorriso encantador em seu rosto.
    — Certamente, senhorita. — Ele devolveu o sorriso.
    — Assim como há coisas ruins e coisas boas em terra, também há no mar. — Ela passou para a esquerda de Matthew.
    — Sim, isso é verdade.
    — Eu sei. — Ela olhou para ele dos pés à cabeça.
    — Desculpa o comportamento da minha mãe mais cedo. — Matthew ficou um pouco envergonhado. — Ela é uma boa pessoa. Tenho a certeza que não quis dizer aquilo.
    Matthew sabia que sua mãe não era cruel. Ela simplesmente se importava bastante com o que os outros diziam. Queria estar sempre onde as pessoas da primeira classe estavam.
    — Não faz mal. Eu estou acostumada com pessoas assim. — Ela cruzou os braços. — Já não machuca.
   — Não devia ser assim. Todos somos seres humanos. Temos sangue, ossos, pele, cérebro, coração e... não há diferenças. Apenas alguns têm muito e outros têm pouco.
    — O senhor não se importa de ser visto a conversar comigo? — Perguntou a menina sorrindo.
    — Claro que não! Isso não é nenhum problema para mim. — Ele aproximou-se e ficou lado a lado com a linda mulher, tão próximos que se tocavam.
    — É difícil pessoas como você pensarem assim. — Ela disse.
   — Infelizmente.
   — São poucas pessoas e não nenhuma. Seria triste se todos não pensassem assim.
    — Eu concordo. Por vezes, a menoria é bastante significativa. Você é muito inteligente! — Matthew virou para encarar ela perfeitamente.
    — Claro que não. Eu nunca passei por uma escola. Apenas convivi com pessoas muito sábias. — Ela desviou o olhar.
    — Há pessoas que passaram na escola, mas não têm metade da inteligência que a senhorita tem.
    — De verdade? — Ela voltou a olhar para o belo par de olhos azuis.
    — De verdade!
    — Está bem. — Ela colocou uma mecha de seu cabelo atrás da orelha.
   O som do mar era o único que podia ser ouvido naquele momento. As águas batendo nos cascos do navio, as pequenas marés que se formavam eram como música. Criavam um clima perfeito para aquela bela tarde de abril.
   Ouvia-se também a respiração um do outro no mais profundo silêncio. Um som que nem as ondas do mar conseguiam abafar. Parecia uma harmonia perfeita.
   Infelizmente, nem todos podiam ouvir aquele silêncio. Em outros lugares, não havia paz. Pessoas ouviam tiros e choros o dia todo. Sofriam com as guerras dia após dia. Felizmente, eles estavam em paz. Não havia muitas mortes em tempos de paz.
   Matthew quebrou o silêncio. — Não quero ser atrevido, mas gostava de saber seu nome.
   — Meu nome é Linda. — Ela sorriu.
   — Eu sou Matthew Whitmore. — Ele segurou a mão dela e beijou.
   — Linda Hilton. — Ela afastou a sua mão. — Não tem medo de ser contaminado por mim?
   — Claro que não! Eu sei que você não está doente. — Disse ele.
   Linda sorriu e voltou sua atenção para o mar. Matthew colocou sua mão por cima da mão da menina que estava por cima da proa. Queria mostrar que não acreditava na história de contaminação. Poderia até ser verdade, mas no caso dela não era.
   — Minha mãe sempre quis conhecer o mar. Ela não parava de falar sobre ele quando eu era pequena. Deve ser por isso que eu gosto bastante dele também. — Linda disse.
   — Você está aqui com a sua mãe? — Perguntou. Não sabia se estava sendo demasiado intrometido. Esperava que não.
   — Não. Ela faleceu quando era pequena. — Seu sorriso desapareceu. — Estava doente e meu pai não tinha dinheiro para ajudá-la. Era um tempo bastante difícil.
   Matthew sentiu-se mal por ouvir aquilo. Sua família esbanjava dinheiro em carros, sapatos, roupas caras e jóias de diamantes enquanto que outras famílias morriam à fome e por falta de cuidados em hospitais com boas condições.
    — Eu sinto muito. Deve ter sido muito difícil.
    — Ainda é. — Lágrimas desceram de seus olhos.
    Matthew limpou as lágrimas de Linda carinhosamente, depois abraçou-a. Seu ponto fraco era o sofrimento de outras pessoas. Principalmente, mulheres e crianças.
   Linda também o abraçou. Ele era um estranho, mas parecia uma boa pessoa, parecia verdadeiro, sincero e de bom coração. Ele era diferente de muitas pessoas ricas que já conheceu.
    — Eu preciso ir. — Ela disse assim que se afastaram. — Meu pai deve estar preocupado comigo.
    — Minha mãe também deve estar procurando por mim. — Ele beijou a sua mão. — Foi um prazer conhecê-la, senhorita Linda.
    — Igualmente, senhor Whitmore. — Ela sorriu. Tentou imitar seu sotaque londrino.
    — Apenas Matthew, por favor! Senhor Whitmore é o meu pai. — Ele riu.
    — Entendido. Adeus, Matthew!
    — Espera! Podemos nos ver novamente? — Perguntou esperançoso.
    — Claro. Pode ser aqui. Estarei sempre aqui. — Ela disse e caminhou em direção aos compartimentos.

                   ***

    Linda voltou para o salão da terceira classe. Seu pai estava conversando com um homem possivelmente da mesma idade que ela. Ela sentou junto deles e tentou não sorrir, pois seu pai ia saber que alguma coisa se passava.
   Ela apenas estava feliz por ter conhecido alguém. Mas seu pai não aprovaria se fosse alguém da primeira classe. Ele simplesmente não gostava das pessoas ricas devido aos insultos e várias outras situações humilhantes que sofreram.
    — Onde você estava, Linda? — Ele perguntou.
    — Fui ver o mar. O senhor sabe que eu sou como a minha mãe. — Ela disse, tentando não gerar suspeitas.
  — Eu sei. — Ele sorriu. — Esse é o Carl. Ele está viajando sozinho. — Apresentou o homem loiro ao seu lado.
   — Seu pai falou sobre você, Linda. Muito prazer! — Estendeu a sua mão.
   — Prazer, Carl! — Ela apertou a sua mão grande e forte. Era como a de Matthew, só que era menos macia, pensou ela.
   — Seu pai falou sobre vocês. Eu também vou para Nova Iorque tentar a sorte. Dizem que lá a vida é melhor que na Europa. — Carl encarou Linda.
    — Deve ser. — Linda respondeu.
    — Eu já estive em vários lugares, mas nunca nos Estados Unidos. A minha vida é viajar.
    — De verdade? Então, você é um aventureiro? — Ela perguntou.
    — Não é bem isso. Eu vou à procura de melhores condições de vida. Na Europa tem sido bastante difícil. — Ele sorriu.
   — É verdade! — Ela olhou para seu pai.
    — Vocês têm muito em comum. — Lucius disse.
    — Pai! — Linda repreendeu-o.
    — Ele também é apaixonado pelo mar, não é, Carl?
    — Sim. Inclusive, já explorei o mar algumas vezes. Já estive com muitos amigos pescadores, até já vi um tubarão branco. — Ele disse passando a mão no cabelo.
    — Um tubarão? — Linda parecia impressionada. — Um tubarão branco?
    — Sim. Tinha cinco metros. E quando eu o vi, pensei que não ia sair vivo dali. — Ele contou. — Estávamos num pequeno barco. Um amigo meu tinha cortado um dedo acidentalmente. Ele lavou a ferida na água e não sabia que o sangue atraia os tubarões.
    — O que aconteceu depois? — Ela perguntou realmente envolvida na história.
   — O tubarão apareceu. Um tubarão branco. Ele ficou rodando o nosso barco. Pensamos que era o fim. Eu rezei para sairmos vivos dali. Foi muito assustador. — Carl continuou.
    — E quando o tubarão apareceu? Como conseguiram escapar? — Ela perguntou mais uma vez.
    — Ligamos o barco e saímos dali. Foi por uma unha negra. — Ele bebeu um copo com água.
   — Foi bastante perigoso. Eu sempre quis explorar o mar, mas não gostaria de encontrar um tubarão. — Linda disse.
    — Os tubarões estão no alto mar, Linda! — seu pai disse.
   — Eu sei disso. Mas eu gostava de saber o que há debaixo do oceano. — Ela estava com o olhar sonhador.
   — É melhor você não saber, minha filha. É melhor não.
    — O mar é um mistério. Eu também gostaria de conhecê-lo. — Carl tirou o casaco.
    — Eu sei que um dia vou conhecê-lo. As melhores coisas têm de ser conhecidas, não é? — Pergunta ela.
    — Certamente. — Seu pai não parecia muito feliz com a ideia.
   Carl olhou para Linda e sorriu. Achou interessante sua paixão pelos oceanos. Ela tinha uma coisa contagiante, mas não sabia exatamente o que era.

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