Necropsia

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Uma mesa fria de autopsia é uma cama ideal para o descanso das criaturas que choramingam pelas vielas noturnas. E fora exatamente em uma destas vielas durante uma noite nublada onde mais um corpo fora encontrado e ensacado pela policia legista.

Era um homem de meia idade, cabelo raspado ao estilo militar, pele morena queimada pelo sol, olhos já esbranquecidos indicando que nenhuma alma repousava dentro daquele vaso de carne. O corpo mantinha sua temperatura equilibrada com ao gelado da mesa de autopsia, era mais um dos exemplares que compunham a coleção daquele necrotério, aos olhos dos legistas aquele homem não era visto além de um pedaço de carne no estado de Rigor Mortis. 

Para os médicos legistas, que vestiam aventais brancos como leite que de certo modo até os assemelhavam com açougueiros macabros, para esses médicos não importava a história a qual aquele pedaço de carne possuía, não importava se tinham família, se em algum dia nutriram sentimentos, a única coisa de valor era estabelecer uma linha temporal dos acontecimentos, vasculhar o organismo do cadáver para então solucionar o quebra cabeça de como aquele homem havia morrido. 

Na maioria das vezes os casos não possuíam uma complexidade hollywoodiana, nunca iam além de um drogado que morreu por overdose, ou brigas de gangues que fatalmente culminavam em membros e cabeças esquartejados e distribuídos pelos guetos da cidade.

Mas os olhos mortos daquele exemplar, repousando em um sono desconfortável, por mais que aparentasse uma normalidade tediosa, escondia uma certa peculiaridade nos sutis detalhes de sua morte ainda inexplicada. O corpo não parentava nenhuma ofensa física, nenhum hematoma, corte ou perfuração, nenhum sinal de uso de drogas, veias limpas, narinas impecáveis, além de tudo os exames toxicológicos do defunto comprovavam sua situação de extrema limpidez.  

A única saída seria finalmente abrir aquele corpo frio e averiguar se a causa da morte estava ligada diretamente com suas entranhas. Um  grande corte no formato de Y tomou conta de todo o tronco do morto, as costelas foram serradas para que o interior frio fosse completamente exposto. Aparentemente o fígado estava intacto, coração em perfeitas condições, rins dignos de serem transplantados, era realmente um defunto de dar inveja aos vivos. 

O corpo não mostrava indícios de doenças avançadas como câncer ou outros tipos de patologias fatais, detalhe que instigava ainda mais a curiosidade dos legistas pelo tal caso que se mostrava um pouco mais anuviado a cada passo. As alternativas começavam a se tornar escassas, o próximo passo era verificar o crânio do homem morto, avaliar se não fora algum tipo de ataque, AVC, ou tumor cerebral. 

A serra inicio sua rotação, todo o ambiente gélido da sala de necropsia fora tomado por aquele som nem um pouco agradável, o disco se aproximava cada vez mais do crânio até que finalmente o disco em rotação começou a serrar o osso branco que ainda estava impregnado por algumas manchas de sangue velho e pedaços da carne do escalpo que por algum motivo não se desprenderam.

Tudo impecável, nenhum sinal de danos, hemorragia ou qualquer coisa que pudesse ter feito aquele homem ter passado para o plano dos mortos. Laudos e análises feitas, exames, testes tudo que poderia passar pela mente de profissionais acostumados em abrir e vasculhar os segredos de uma morte fora feito e mesmo assim nenhuma resposta.

Os homens entretidos naquele quebra cabeça afastaram-se um pouco em um rito reflexivo, entraram em um transe enigmático, instigaram cada um de seus sinapses a percorrer todas as soluções imaginais e inimagináveis. Aos poucos o vazio do silêncio fora progressivamente incomodado com um som semelhante a de um balão de ar se expandindo. 

Rapidamente os legistas recuperaram a atenção sobre o corpo, e observaram os órgãos expostos. Um em especifico apresentava um comportamento bizarramente amedrontador, os pulmões daquele homem começavam a se expandir, exatamente como um grande balão faz em quanto está se enchendo. 

Aqueles médicos tão presos a lógica se viram amarrados por cordas manufaturadas pela total falta de sentido, como os pulmões de uma pessoa morta poderiam se inflar daquela maneira?

Foi no exato momento desta indagação interna que o tecido que se expandia veio a explodir, e de dentro do órgão uma nuvem de pó branco pairou sobre o corpo, tomando conta de boa parte daquela cama dos mortos. Era como se o interior daquele órgão estivesse servindo como antro para a fada branca, como se fosse apenas uma encubadora de algo inesperável e inexplicável.

De repente a nuvem de pó branco começou a se transfigurar em pequenas figuras que se comportavam como insetos voando em um uma coreografia assíncrona. O fenômeno grotesco começou a tomar um frenesi selvagem, o som era semelhante a um enxame de vespas prestes a atacar uma vítima. E isso foi exatamente o que aconteceu, o enxame branco voou para cima dos chocados com a cena, e as criaturas insectoides   começaram a se alimentar de carne, ossos, tecido, tudo o que encontrassem fazendo resistência a sua passada.

Ao final do banquete nem sequer uma gota de sangue, pele, cabelo ou vestígios do massacre restaram como prova do bizarro acontecido. As cortinas do show de horror se cheiraram quando um pé descalço tocou o chão descendo de sua cama fria dos mortos.


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