Uma só carne - Parte II

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A viagem até Avignon foi longa, silenciosa e melancólica. Fiquei pensando durante todo o percurso sobre tudo o que está acontecendo. Há um tempo atrás eu era apenas uma moça com um pai pintor alcoólatra e uma mãe triste e rancorosa. Agora, eu descobri que tenho ''outro'' pai que aparentemente é o próprio mal encarnado. O que mais poderia dar errado?

Quando chegamos em Avignon, fiquei um pouco aliviada, minha casa não foi a mesma desde os recentes acontecimentos, porém, ainda era o único lugar a qual eu me sentia bem.

Descemos da carruagem e fomos recebidos pelas criadas.

- Srta. Lemaire, que bom que voltou! - disse uma das criadas - Sua mãe está de volta.

- Iremos te deixar descansando, passamos por muita coisa esses dias. Fique com sua mãe, nos falaremos depois. Vamos levar Dóris e Pária para uma pensão que precisa de moças para ajudar, elas ficarão bem lá. - disse John.

- Certo. Cuidem-se - abracei Pária e Dóris. 

Elas me deram um sorriso e logo depois Victorine olhou-me e aproximou-se.

- Preciso falar com você mais tarde. Eu não sabia de nada disso, eu juro. - seus olhos estavam expressivos e calmos.

- Até mais, Victor. - abaixei os olhos tristemente. Não sabia mais no que acreditar.

- Voltarei para cuidar do seu jardim. - Cumberland piscou e seguiu os outros.

Corri até chegar ao quarto de Arletta, e lá estava ela deitada na cama.

- Mãe! - fui até Arletta e sentei-me perto de sua cama - O que houve?

- Não se preocupe, eu estou bem. Só estou cansada da viagem. Estive fora por muito tempo. - Arletta segurou minha mão - Lacey me disse que foi a Conway estudar catolicismo, estou orgulhosa. 

- É... - engoli seco - Foi ótimo.

- As coisas estão melhorando a cada dia, depois que Dimitri morreu, milagres acontecem. Myrrine, Deus está nos abençoando! - Arletta fez a cara que sempre faz quando começa a dizer essas coisas religiosas. 

- Onde esteve todo esse tempo? - perguntei.

- Resolvendo assuntos. Coisas com dinheiro e afins, mas não há com o que se preocupar. - Arletta sorriu.

- Quando você pretendia dizer que Dimitri não era meu pai? - encarei ela

- Como pode falar uma coisa dessas? É claro que... - antes que Arletta pudesse terminar, eu cortei-a.

- Pare com isso. Kennedy Brahms é meu verdadeiro pai, e duvido que você estava em Paris apenas para ''negócios''. - joguei a fotografia na cama dela - Não adianta mentir. Eu sei.

Arletta arregalou os olhos e calou-se enquanto olhava a foto.

- Eu te avisei, Myrrine. Por que se meteu nisso? - ela começou a chorar - Fique longe deles, deixe-os fazer o trabalho. Deixe-os terminar.

- Você sabe? As obras, as criaturas? É cúmplice de tudo isso? Como você pôde? - levantei-me e afastei-me dela.

- Dimitri acabou com a minha vida, então deixei para que acabassem com a dele, mas ele não merecia apenas a morte, sua alma ficará presa agora. Ele sofrerá. - Arletta deu uma risada - Myrrine, por que você o defende? Não se lembra de tudo o que ele fez comigo? Com você?

- Ele nem sempre foi assim, e você sabe disso, a maldição o mudou. Você é uma assassina.

- Sim, ele preferiu luxúria a família. Tivemos que sofrer com isso durante anos, mas agora, nós podemos ter poder, Myrrine. Você sabe que estamos arruinadas, depois que Dimitri morreu, não somos nada para essa sociedade, mas, podemos mudar isso. Voltaremos a comandar Avignon e toda a França. Teremos riqueza. - Arletta tentou se levantar lentamente da cama - Eu não matei Dimitri, eu jamais quebraria um mandamento de Cristo.

- Quem... o matou? - dei um passo para trás.

- Maurice Apolon - Arletta deu uma passo a frente - Ele tem seus motivos, e logo mais, você terá uma conversinha com ele. Assim, poderá tirar todas suas dúvidas.

Não me surpreendi quando ouvi o seu nome. Cumberland tinha razão, Maurice fez tudo isso. Isso quer dizer que Victorine fez parte de tudo também? 

- Quem mais? - comecei a chorar - Quem mais participou? 

- Você não vai acreditar - Arletta deu outro passo a frente - Madre Sicília, Padre Ryan e sua tia Lacey. Quem diria, não é mesmo? A boa notícia é que seu amado Victorine não sabe de nada, mas ele está nos nossos planos e acho que você pode até gostar do que vou propor.

Senti-me como se alguém tivesse me dado em soco no estômago e pensei que iria vomitar.

- Agora, você irá fazer o que eu mandar, está bem? Tudo ficará bem. - disse Arletta com um olhar maníaco e uma voz doce.

- Não irei fazer nada. Não vou fazer parte disso. - encarei ela com meus olhos cheios de lágrimas.

Arletta foi até o armário próximo a cama e pegou uma faca.

- Vai sim, Myrrine. Você não tem escolha. Se não o fazer, certificarei que você não tenha um final feliz, e pode ter certeza que suas novas amigas malucas do sanatório irão sofrer junto com o seu namorado jardineiro. 

- Você é louca. - olhei para a porta mas Arletta percebeu o que eu iria fazer. 

Corri o mais rápido que pude e Arletta saiu correndo atrás de mim com a faca na mão. Eu fiquei surpresa ao vê-la correr tão agilmente, ela voava pelos corredores como uma louca.

- SOCORRO! - gritei enquanto descia as escadas.

Quando cheguei na sala, eu percebi que não havia nada que eu pudesse fazer. Maurice Apolon estava lá. 

Ele me segurou pelos braços e me jogou no sofá.

- Acalme-se, Srta. Lemaire. Você só precisa fazer sua parte. - Maurice caminhou em minha direção.

- O que vocês... - eu estava desesperada e o choro entalava minha garganta - O que vocês querem de mim?

- Você só precisa se casar com meu filho. Viu só? Muito simples. - Maurice sentou-se ao meu lado. - Case-se com Victorine e esqueça toda essa história. Recomece sua vida e nada disso lhe afetará novamente.

- Eu não entendo. - apertei os olhos e enruguei  a testa - Por que isso?

- Minha querida... - Maurice pousou sua mão em meus ombros - Não percebe o que estamos fazendo aqui? Deus nos deu uma oportunidade de um recomeço, é um milagre! Dimitri destruiu minha vida e a vida de sua mãe. Destruiu a sua também, éramos todos oprimidos por ele. Ele era uma péssima pessoa e mesmo assim ele ganhava tudo. Poder, talento, riqueza e luxúria, vivia do pecado e doou sua alma para o demônio. Ele e Kennedy se juntaram para espalhar o mal e a morte por onde passavam. 

Maurice levantou-se e abriu os braços.

- Deus nos vingou e nos deu uma chance de sermos poderosos e felizes. Acabaremos com as almas. Iremos enfrentar o próprio demônio e venceremos. Por fim, toda riqueza será nossa. - ele começou a rir e Arletta ficou do seu lado. 

- E como pensam em fazer isso? - perguntei

- Um ritual. - Maurice colocou as mãos para trás e olhou para cima - Sabe, as obras são apenas uma passagem dos mortos para o nosso lado. A criatura é o reflexo da alma do autor. Kennedy conseguiu fazer muitos artistas a entrarem no pacto. Temos muitas ''criaturas'' espalhadas por ai. 

- Vocês querem ter o que eles tinham. Querem o poder. Vocês são iguais a eles - esbravejei.

- Não, não, não. Nada disso. Estamos sendo apenas recompensados, estamos nos vingando. 

- Tudo ficará bem. - Arletta sentou-se ao meu lado.

- Escute o que vou lhe dizer. - Maurice encarou-me - Victorine está aqui em Avignon, portanto, você irá aproveitar essa chance para as declarações, e depois, falaremos sobre o resto. Temos muito sobre o que conversar, Myrrine. O recomeço está próximo - Maurice olhou para Arletta e os dois me encararam sorrindo.

Foi nesse momento que percebi.

Não havia nada que eu poderia fazer. Meu fim estava próximo.

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