Desabafo

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DOIS ANOS ATRÁS

Depois de um ano, ficou menos difícil se acostumar com a rotina na prisão. Jamais seria o melhor lugar para se ficar, nem de longe, mas Daniel entendia que não existia outro destino para ele a não ser aquele. Isso o ajudou a enfrentar todo esse sacrilégio durante os meses que se passaram. E também, de certa forma, motivou-o a seguir em frente.

Nada como o tempo para amenizar as feridas. Felizmente, não enfrentou nenhum problema naquele presídio no qual foi transferido logo quando começou a cumprir pena. Tampouco teve divergências, brigas ou algo do tipo. O lugar, além de ser um pouco melhor cuidado, tinha mais gente fazendo a guarda.

Sem grandes dificuldades, além do sofrimento interno que havia diminuído, Daniel pôde encarar um dia após o outro com menos pessimismo. Mesmo que cada dia parecia durar uma eternidade, o pior havia literalmente passado. Praticamente sozinho nesse momento de sua vida, teve que dar um jeito para poder enfrentar tudo de cabeça mais erguida.

Como não estava em uma colônia de férias, tinha horário pra tudo. E principalmente para trabalhar. Todos os outros tinham que cumprir funções lá dentro, dentre várias. Era a chamada ressocialização, no qual diziam que ajudava a diminuir o tempo de pena quanto mais se trabalhava. Na verdade era algo criado para não deixá-los folgados.

O trabalho de Daniel era em uma espécie de oficina. Lá, parte dos presidiários cortava e prensava pedaços de madeira, algo mais pesado. Eles ficavam por horas fazendo casinhas para cachorros, banquinhos, brinquedos e outros objetos de menor porte. Não dava para negar que ocupar a mente com aquilo era algo relativamente bom.

Em um dia, como nos anteriores, o ex-hacker manipulava uma serra esquadria para cortar uma ripa, usando óculos de proteção. Parou o que estava fazendo quando viu o senhor a sua frente começar a tossir e a passar mal. Era o Josemir, um detento idoso, barrigudo, de cabelos ralos e bem branquinhos. Por conta do trabalho diário, era o colega com quem Daniel tinha mais afinidade.

— O senhor tá bem? — Perguntou Daniel ao se aproximar dele.

— Melhorou. — Respondeu Josemir se recompondo — É essa fuligem toda, normal.

— Já falei que não precisa ficar tanto tempo aqui. Vai ficar doente.

— Se eu parar de fazer isso, aí sim é que eu vou ficar doente.

— Você quem sabe. — Disse voltando para perto da serra.

— Um dia vai entender, garoto. Já tô mais pra eternidade do que pra vida.

— Também não é pra tanto. — Falou e voltou a ligar a serra.

Os trabalhos recomeçaram. Josemir começou a organizar algumas ripas. Respirava fundo, sentia-se melhor. Mas algo o deixava pensativo, de cabeça baixa. Uma preocupação pertinente que o deixava um tanto aborrecido.

— A gente passa uma vida toda planejando as coisas. Pra depois fazer besteira e tudo ir por água abaixo. — Comentou o senhor.

— Sei como é isso.

— Se eu tivesse um arrependimento, seria não valorizado o que eu tinha. Agora já foi.

— Já deixei de esquentar a cabeça com essas coisas. Tô no fim da linha.

— Meu filho, você vai falar pra um homem de sessenta e oito anos que tá no fim da linha? É novo demais pra ter esse tipo de pensamento.

— Não tenho mais ânimo pra pensar o contrário. — Respondeu e voltou sua atenção para o equipamento que usava.

Os dois ficaram calados por alguns segundos, cuidado de seus respectivos afazeres. Até que Josemir voltou a falar.

Passado SelvagemOnde histórias criam vida. Descubra agora