Capítulo 1

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Naquele dia o céu decidiu chover. Sempre era um deus nos acuda quando o dia acordava nublado. Naquela cidade, os dias de chuva não eram muito poéticos. Yuri não podia apreciar o barulho da água no telhado, as árvores balançando, ou o vento soprando o ar frio contra o pátio da casa. Porque os dias de chuva eram dias de toró. E ele não podia simplesmente ficar em casa. Tinha que enfrentar o temporal e pegar o ônibus para chegar no colégio.

E não adiantava pegar aquele guarda-chuva florido da vovó atrás da porta. Nos dias em que o tempo estava muito puto, vez ou outra gostava de virar a sombrinha do avesso no meio da tempestade, ou simplesmente carregar o negócio voando pela rua.

A chuva na cidade também tinha outro inconveniente. Durava dias. Então Yuri podia se preparar para uma longa temporada de meias molhadas do pé afundar em poças de lama. Ele gostaria de simplesmente ficar em casa. Mas se fizesse isso, teria que ficar vários dias , e sem dúvida reprovaria no final do ano. Mas passar de ano até que era fácil. O maior problema era outro, para o qual ser aprovado no colégio era o menor dos desafios. Trata-se do enem.

Enquanto seu pai estava em casa, ele podia pegar uma carona no carro velho, e ele o deixava no seu destino. Certo que quando chegava lá, teria que descer e empurrar o carro pra ele pegar de novo, e se molharia do mesmo jeito. Mas era pelo menos por alguns instantes. Depois ele entrava novamente no colégio morrendo de vergonha.

No entanto, desde que o velho deu no pé, não podia mais contar com a carona. Era mais fácil sair de casa nadando.

Naquele dia seguiu fielmente o cronograma e chegou encharcado. Afastou a sombrinha florida do corpo, e balançou tentando secar o melhor que podia para guardar sua inútil companheira. As pernas da calça grudadas ao corpo e o sapato fazendo aquele barulho ridículo de tênis molhado. Ele teria que secar no ar condicionado mesmo. Ficaria morrendo de frio.

Na frente do colégio, viu os grupinhos formados. Pensaria que todos os lugares deveriam seguir a regra de dividirem as pessoas entre bons e maus. Ele não podia sequer se candidatar a vaga de mau. Ser mau significava ser legal, o que não era. Não podia dizer que era bom. Era outra categoria que lhe era negada. O mais adequado seria dividir seu grupo entre bons e bocós. Esta última era a sua categoria. Iguais a ele compunham um exército de mal vestidos, desajustados, garotos de óculos fundo de garrafa, ou garotos com o cabelo oleoso e mal lavado. Dentro da categoria dos bocós, ainda existia uma subclasse mais a esquerda, mais abaixo dentro da longa pirâmide escolar que acomodava todos os alunos, a casta dos bocós lisos. E então, sua espécie teria a descrição perfeita. Bocolis lisus. Deveria ter uma foto sua no livro de biologia.

No entanto, havia um evento especial na vida de todo o aluno que tinha a chance de alterar a sua classificação para sempre. Era o Enem.

Por longos dois anos, foi completamente desprezado pela turma dos bons. Filhos de altos funcionários públicos ou empresários. Eles chegavam a escola nas longas pick-ups de seus pais, entravam no pátio da escola, para acomodar seus filhos cheirosos e limpinhos, sem um vestígio de lama em seu cabelos louros ou suas calças de marca. No terceiro ano, porém, as coisas pareciam querer mudar.

Yuri sempre foi um aluno que tirara boas notas. Antes, ele podia ser apenas um CDF bocó liso. Mas agora, todos sabiam que provavelmente ele iria bem na prova no final do ano, e todos queriam ser seus amigos.

Mas não era fácil enganar o velho Yuri. Ele vinha de uma longa linhagem de pessoas rancorosas e mesquinhas. Diziam as lendas que sua bisavó morreu sem falar com o filho por causa de uma casa. Por coincidência, esse era o seu avô. Então era quase consenso que ele tinha herdado o gene do rancor familiar.

Seus amigos, no entanto, não compartilhavam muito de seu apego as tradições. Ou suas famílias deviam ter outros hábitos, como o de aproveitar a porta para entrar na festa dos ricos. Isso também lhe conferia alguns problemas. O da solidão. Não conseguiram ganhar sua amizade, mas o seu grupo tinha debandado. Agora eram um bando de bocós que falava com os bem vestidos e bem lavados, mas muito burros para irem bem nas provas da vida.

Por isso, quando chegou, todos faziam de conta que os velhos colegas eram amigos desde o jardim da infância. Como Yuri era um deslocado pro resto da vida. Passou por todos e foi se esconder no final do corredor, até a campa bater e todo o mundo ir se amontoar dentro da sala.

Entendia os motivos do pai o ter matriculado naquela escola. Parecia que a única chance de ter uma boa nota no Enem era estudar numa escola particular. Por isso, espremia até a última gota de sangue para pagar a mensalidade. Certo que não sobrava muito nem pra roupa nem pros calçados. Ou pra combater suas manchas de pano branco, ou o cabelo cheio de lêndeas. Mas o moleque tinha boas notas, e não podia desperdiçar seu futuro. Isso parecia ter sentido enquanto o pai estava em casa. Mas depois que saiu, disse que não pagaria mais mensalidade alguma. Foda-se o Yuri, que continuava estudando ali por uma combinação de motivos: boas notas, Enem, e ele ser uma das poucas esperanças da instituição. Ainda assim era vergonhoso estudar de favor. Ele preferia se unir aos outros de sua espécie. Na escola púbica, ele não seria diferente em nada dos outros duros, e ninguém reclamaria de suas únicas duas camisas.

Quando o pai saiu de casa, sua mãe ainda foi pedir sua transferência no colégio para levar o Yuri para uma instituição pública. A diretoria não deixou. Disse que o jovem era muito inteligente, que estava às vésperas de um momento importante. Ela deveria tentar. Moral da história, permaneceu ali. Mas isso não apagava o fato de que entrava pelo portão meio torto. Os corredores ficavam meio folgados.

Seu nariz começava a escorrer.

Naquele dia era aula de biologia. Assunto: protozoários. E o professor dava um exemplo. Como sempre havia um ou outro engraçadinho que ficava fazendo piada. E a gargalhada espocou quando o professor disse que a criatura dava diarreia. O desenho era característico, um centro imitando o núcleo da célula, e o resto que parecia um ovo na frigideira. Até o fato de dizer que era uma animal unicelular parecia uma ofensa.

Como o nariz de Yuri começava a escorrer, ele era obrigado a sair a todo o momento para ir no banheiro assoar. Não deu outra. Os rapazes do clube dos bons encontraram o momento perfeito.

— Professor, eu acho que o Yuri está com protozoário.

— Ele está com ameba.

E foi dessa forma que eleganhou o seu famoso apelido. Sua classificação estava completa, uma ameba bocó e lisa, ou simplesmente: O Ameba.

O AmebaOnde histórias criam vida. Descubra agora