Rancores de uma amizade esquecida

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Darrion era reconhecido como um dos melhores guerreiros que haviam lutado na Grande Guerra – era por isso que o príncipe o convidava a acompanhá-lo na missão. Mas Darrion sabia que Duncan, se tivesse vivo, seria melhor do que ele. Sempre fora mais talentoso a manusear a espada, mas lutara contra o adversário errado, na altura errada. Era assim a vida: cheia de injustiças.

Apenas depois da morte de Duncan é que Darrion, motivado pela revolta e vingança, havia começado a treinar mais, não fazendo quase outra coisa para além de treinar e lutar. Após o final da guerra, apesar de poder regressar para aqueles que amava, Darrion sentiu-se desamparado. Abandonado pelos irmãos de guerra e pela espada.

Depois de regressar a Ankor, Darrion alistou-se em qualquer missão: fosse matar bandidos de Eknor ou proteger carroças de mantimentos que saíam da Vila do Campo. O importante era não parar. Mas foi obrigado a parar. Foi-lhe exigido por Kyla que passasse mais tempo com ela. E Darrion nunca fora capaz de recusar nada à mulher.

Não tardou a engravidar Kyla. Os primeiros anos foram bons: cheios de amor e calor. Mas, à medida que Travis ia crescendo, Darrion ia-se fartando cada vez mais da vida de aldeia em que havia crescido. As cicatrizes da guerra não o deixavam dormir à noite. E o seu corpo já só conseguia sarar se desferisse profundos golpes em inimigos desconhecidos. Ao fim de dezanove anos de sofrimento, as desavenças que armou com soldados que passavam pela aldeia levaram a que fosse preso. Preso no dia em que o filho fazia dez anos. Mais uma cicatriz.

Tentou focar a audição e ver o presente. Raios do nascente penetravam por entre as grades enferrujadas da janela. Seguindo o trajeto de um feixe luminoso, Darrion olhou para o rapaz. Nasciam-lhe pelos loiros afilados no pescoço. Buckley continha o fôlego. Estava abraçado aos ferros da cela. Observava o exterior.

-Buckley, de que estás à espera?

-De que te venham buscar.

Darrion sabia que a proposta do soldado havia sido um golpe duro para o rapaz.

-Só me vêm buscar, se eu quiser. Eu não aceitei a proposta...

-Ainda. É apenas uma questão de tempo. - Buckley engoliu em seco, ainda com as costas encurvadas e ossudas voltadas para Darrion. - Nenhum prisioneiro recusa uma proposta de liberdade. E muito menos um prisioneiro com família que já está preso há treze anos. Como tu.

O som de passos no corredor. Dois guardas pararam em frente à cela deles. Olharam para Darrion, mais curiosos do que receosos.

-Darrion Bradley, o general Osbert Glarstone requer a sua presença.

Darrion sentiu um arrepio a percorrer-lhe a coluna. As mãos fecharam-se em punhos. Memórias de um passado de guerra assaltaram-lhe a consciência. Sentiu-se a ofegar por um instante, mas no seguinte já havia controlado a respiração. Olhou para Buckley, cujos olhos brilhavam com a certeza de que ele aceitaria a proposta. Darrion não tinha tantas certezas. E saiu pela porta da cela aberta.

Guardas que empunhavam uma moca à frente e atrás. Começou a subir a escadaria até ao cimo. Pelo caminho, cruzou-se com duas mulheres anafadas. Vestes desajeitadas. Cheiravam a cama. Trocaram palavras e sorrisos com os guardas. O seu olhar estava fixo nelas. Cheiro a fêmea. Desejo. Orgasmos. Uma realidade passada que voltava ao presente. Darrion sentiu-se a despertar. A Kyla. Lembra-te da Kyla. Amava a mulher e sempre presou a lealdade. Mas, naquele momento, o seu corpo amava qualquer mulher.

Teve de ser empurrado para continuar a subir as escadas. Chegou ao último andar. Um guarda bateu à porta. Soou uma voz grave que Darrion tão bem conhecia. Uma voz de outros tempos. Tempos de irmandade. Irmandade ignorada. Traição. As suas mãos transformaram-se em punhos. A porta foi aberta. Um bafo quente a lenha queimada. Entrou.

Expressão relaxada. Pouco cabelo. Queixo em duplicado coberto de barba rala. Osbert Glarstone.

Osbert levantou-se e apertou-lhe a mão, tentando parecer descontraído.

-Darrion, meu sacana, parece que finalmente vais ser livre. - O general deu-lhe uma chapada de afeto na cara com a sua mão calosa e voltou para a secretária.

Darrion contraiu o maxilar. Treze anos. Haviam passado treze anos desde que ali chegara. Treze anos de trabalho de escravo e de maus-tratos. Treze anos em que o passado de irmãos de guerra havia sido ignorado. Treze anos a viver no limiar da loucura. Um olhar para sondar o que o rodeava. Reparou numa braseira.

Osbert ordenou que lhe fosse entregue um copo. Os dedos de Darrion envolveram o copo metálico. Um contrariado soldado encheu-o de cerveja. Cerveja. Toda a sua boca se ajeitou para receber a cevada fermentada. O amargo das longas noites de gargalhadas e irmandade. Um trago apenas e o copo ficou vazio. Pesou o metal e olhou para o general.

As gargalhadas de Glarstone preencheram o quarto.

-Continuas a virar copos que nem um vadio!

Darrion observou o outro. Pele vermelha e uma barriga a rebentar as vestes. O general reparou no seu olhar.

-Sim, sim, mas eu não é só bebida. Também como que nem um porco. E fodo que nem um porco. - Mais gargalhadas. Só terminaram quando olhou para o guarda. - De que é que estás à espera? Não deixes o homem a secar. Enche-lhe o copo!

O guarda trincava o lábio superior enquanto obedecia. Não era um dos seus fãs. Darrion sentiu algum prazer.

Osbert ordenou aos guardas para abandonarem a sala. Darrion sorriu para si – ainda tinha o copo metálico na sua posse.

Quando a porta foi fechada, Osbert voltou a encher o copo de Darrion. Entregou-lho. Os olhos de Darrion não se desviavam do general.

Glarstone olhou para ele com pesar.

-O que é que este sacana quer? É isso que estás a pensar, não?

Darrion anuiu.

-Calculei. Quero que saibas que, para mim, a nossa amizade não acabou quando foste preso. Fiquei desiludido, só isso.

-Quando cá cheguei, não me quiseste ouvir. - Cada palavra, um golpe.

-O que é que querias que eu fizesse? É o rei que faz a lei. Eu tenho de obedecer.

Darrion apontou-lhe o dedo.

-Tu conheces a minha mulher. Tu conheces o meu filho.

Osbert deixou-se cair na cadeira e suspirou.

-É como te digo, Darrion, não havia nada que eu pudesse fazer...

Darrion apertou o copo entre os dedos. Tinha os dentes à mostra, mas não sorria. Soltou uma gargalhada sem humor.

-"Não havia nada que eu pudesse fazer." Então de que serve andares a lamber o cu à coroa para te tornares general?

Osbert endireitou toda a sua gordura.

-Podes acusar-me do que tu quiseres, mas sabias quais eram as consequências dos teus atos! E, mesmo assim, atacaste os soldados!

O metal começou a ceder. Os dedos de Darrion ficaram lá marcados. Quatro olhos fixos. Osbert segurava algo atrás das costas.


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