O Primeiro Homem

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Quando a escuridão dominava as terras, reuniram-se em torno da fogueira. Arorn foi o primeiro a servir-se. Encheu um odre com cevada fermentada e no prato colocou um naco da barriga do veado. Buckley teve direito aos cortes menos nobres do animal: à carne que antecede os cascos, ao focinho e à cauda. O estômago de Buckley não aceitava qualquer corte do veado. Só ver os outros a trinchar o animal já o revoltava.

Não trocaram palavra alguma durante a refeição. Arorn foi o primeiro a terminar de comer. Levava o odre à boca enquanto observava os outros. Os seus olhos fixaram-se em Buckley. Olhos poderosos.

-Não comes, Buckley?

-Não tenho fome, meu príncipe - tentou desculpar-se.

Arorn anuiu, pensativo.

-És Esquecido da parte do teu pai, certo?

-Sim, vossa alteza.

Ouviu Shaw murmurar algo para si.

-O Shaw disse-me que não querias trinchar o veado. Isso tem alguma coisa a ver com seres Rhargan? - O príncipe parecia genuinamente interessado.

-Penso que sim... embora não tenha a certeza, meu príncipe. Conheci o meu pai por pouco tempo e não sei muito sobre os Rhargans. - Buckley sentia-se desconfortável, tanto com as perguntas, como com a escuridão que os rodeava. Parecia-lhe ouvir o canto de predadores ao longe.

-Estou a ver... Presumo que nunca tenhas estado tão a leste do Norte – mudou Arorn de assunto.

-Nunca, meu príncipe.

-A Oeste, habituamo-nos ao Grande Mar. Ouve-se sempre a rebentação. Aqui, o silêncio da noite lembra-nos que não somos de cá. Isso assusta-te?

O rapaz olhou para o chão. Pensava na melhor resposta. Deu um salto no mesmo lugar. Estalaram os ramos de uma árvore. Alguma ave noturna.

-Assusta, meu príncipe.

-Que idade tens, rapaz?

-Fiz dezoito anos há cinco luas.

-A idade da minha filha Sonya. Onde é que eu andava com dezoito anos? - Arorn pareceu ver imagens que não o agradaram. - Ah, andava a combater os rebeldes de Eknor. Tem sido sempre o mesmo. Fora uma ou outra exceção. Nessa altura, ainda eram poucos... - A atenção de Arorn voltou-se para dentro.

Buckley sentia-se aterrorizado por tudo aquilo. Missão suicida. Ter de tirar a pele a um veado. Estar rodeado pela escuridão. Mas Arorn parecia tão intrépido. Tenho de lhe perguntar como faz.

-Gostava de saber se a vossa senhoria também...gostava de saber se também sentis medo – perguntou Buckley, com a voz tremida.

Kinsey e Shaw olharam para o príncipe. O primeiro parecia curioso, enquanto o segundo quase ansioso.

-Sinto medo, sim. Penso que só os loucos é que não sentem. Mas também sinto determinação. E a determinação para mim é muito mais poderosa. Um homem não pode vergar face ao medo. Deve enfrentá-lo. Porque do outro lado está tudo aquilo que vale a pena na vida.

-O Cume das Riquezas? - Os olhos de Kinsey brilharam quase doirados ao referir o cume lendário.

-Neste caso, talvez. - Não detetou o mesmo brilho nos olhos de Arorn.

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Darrion sentia-se a ferver. O que sabe o príncipe de medo? Não tinha idade para ter lutado na Grande Guerra. Quando nasceu, já a guerra estava a terminar; já Darrion havia perdido muitos irmãos; já Darrion havia morto mais homens do que Arorn tinha visto mortos. O príncipe cresceu nas ruas de Porto Ventoso, a brincar. Darrion cresceu nos destroços de Ankor, de espada em riste. Cresceu com a mãe, que fez de tudo para o alimentar a ele e ao irmão. Porque nunca tinha conhecido o pai. Porque o pai era um dos muitos mortos de guerra. Aos catorze anos, Darrion matou o seu primeiro homem.

As Profecias da Tempestade I - A Ponte ProibidaOnde histórias criam vida. Descubra agora