A Preparação

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Tiveram direito a não trabalhar naquele dia. "Para estarem em forma para a missão", disse-lhes Osbert. Ficaram o dia inteiro dentro da cela a descansar, enquanto os outros prisioneiros sofriam a escravatura diária. Darrion sentia algum prazer ao imaginá-los a serem chicoteados, não por imaginar a dor dos outros prisioneiros, mas por saber que ele não iria sofrer mais aquilo.

Darrion olhou para o rapaz. Buckley continha o fôlego. Estava abraçado aos ferros da cela. Observava o exterior.

-Buckley, estás a ver se nos vêm buscar?

A sua cabeça anuiu.

-Quero estar preparado.

-É só amanhã.

-Não consigo descansar. Estou demasiado nervoso.

Darrion travou as palavras que lhe iam a sair da boca. Não quis afugentar a infantilidade do rapaz. A inocência de Buckley era resiliente. Resistia às feridas nas mãos, aos espancamentos e à falta de alimento. Inocência resiliente. Podia ser confundida com estupidez. Talvez dela não fosse diferente. Mas Darrion, mesmo com a sua experiência em desilusões, também nutria alguma esperança. É disso que eles se alimentam, da esperança. A esperança era a introdução à desilusão, sabia disso, mas... E se desta vez for diferente? E se eu puder sair deste inferno para sempre? E se eu puder ser livre?

Mesmo que fossem na missão, a liberdade era improvável - seria a missão mais louca que um Homem alguma vez havia tentado. Um suicídio de suor, sangue e lágrimas. Um suicídio de esperança. Uma liberdade morta. Ainda assim, melhor do que uma prisão morta. A não ser que causasse a morte daqueles que amava.

Fez sinal a Buckley para que se aproximasse.

-Não é por estares aí a ver se eles vêm que vais estar mais preparado. Anda cá.

Buckley olhou com relutância para o exterior, mas lá se aproximou. As suas pernas ossudas cruzaram-se e Buckley sentou-se.

-Estás com medo? - indagou Darrion.

-Não. - O impulso tomou conta da resposta de Buckley. Uma resposta que servia para a prisão. Homens que diziam ter medo não sobreviviam.

-Tens amor à vida?

-Sim.

-És estúpido?

-Não... não sou estúpido.

-E não tens medo?

Os olhos azuis de Buckley fitavam Darrion. Os seus lábios moviam-se, mas da sua boca não saíam palavras. Incompreensão.

-Mas, tu...

-O que eu disse servia para este inferno. Acreditas que vamos ser livres?

-Sim...

-Então não respondas como um prisioneiro. Estás cá, mas já não és de cá. Entendes?

Buckley anuiu três vezes.

Darrion prosseguiu.

-Eu estou cheio de medo. Medo de que a missão não seja bem-sucedida e de que tenha de voltar para aqui. Tenho medo de ficar louco. Tenho medo de morrer no percurso. E tenho medo de a minha mulher já não me querer. Ou, pior, de ter acontecido algo de mal à minha família. - Envolveu a mão do rapaz com a sua. - E tu, de que tens medo?

Buckley engoliu em seco. Fitou o chão. As palavras demoravam a escalar o seu pescoço torto. Inspirou.

-Tenho imenso medo, talvez ainda mais do que de morrer, de que a minha mãe não me aceite de volta. Por ser ladrão, percebes? E tenho medo de nunca vir a ser corajoso... - O final das suas palavras foi marcado por um olhar de expetativa em direção a Darrion.

-Roubaste por ti, pela tua mãe e pela tua irmã. Tens de limpar essa consciência. E ser corajoso não é grande coisa. São os primeiros a morrer numa batalha. Carne para machado.

Buckley anuiu e voltou a baixar o olhar.

E a tua consciência... está limpa? Era o aniversário de Travis e Darrion não esteve presente. Sentiu a madeira do cavalo empinado na mão direita. A prenda que o filho nunca recebeu. Ouviu o choro de uma criança cujo pai desapareceu sem deixar rasto. Passou um guarda vestido de negro em frente à cela. E a culpa é deles.


De noite, foram levados pelas escadas acima, virando à direita. Voltaram a descer, indo dar a um conjunto de celas que pareciam não ser utilizadas há muito tempo. Uma delas foi aberta – a porta rangeu de ferrugem. Foram empurrados lá para dentro. Darrion não sentiu o cheiro a urina.

Buckley colocou-se do lado direito, a olhar pela janela. Foi para o lado dele. A grande Floresta dos Foragidos – um carvalhal sem fim. Um nevoeiro sem fim apenas iluminado pela lua cheia que estava camuflada. Mas sabia que os prisioneiros estavam cada vez a entrar mais no ventre da floresta; cada vez a entrar mais no território dos predadores.

-Devem ter-nos posto aqui para sentirmos saudades. - Buckley não desviava o olhar do exterior. - Eu cá não sinto.

Não se tem saudades da tortura. Cicatrizes, sim. Nunca saudades. As saudades são belas. Só se tem saudades do que amamos. As saudades são a força que aguenta a tortura. A tortura fica para trás. Apenas restam as saudades. E, talvez, aquilo que criou as saudades. Se a sorte estiver do nosso lado...

Passado pouco tempo, foram alimentados. Puderam repetir a aveia. Darrion observava a neblina que nunca levantava. Por vezes, rajadas empurravam o fumo da noite por entre as grades. O cheiro da lenha a crepitar. Crepitava com o suor e sangue dos prisioneiros.

A seu lado, Buckley tinha o olhar absorto. Pensou em chamá-lo, mas decidiu deixá-lo a sonhar – qualquer local imaginado era melhor do que o interior de uma cela.

Darrion olhou para Kyla e Travis. Se ainda lá estavam, naquele momento, dormiam em Ankor, numa casa pequena, mas aconchegadora o suficiente. De dia, Kyla vendia o peixe apanhado pelo filho.

Naqueles dez anos, Kyla deveria ter ganho mais rugas e cabelos brancos. Darrion sentiu o coração a pesar-lhe. Não pelas rugas ou pelos cabelos brancos, mas por não ter testemunhado os efeitos do tempo e dos ventos em Kyla. Sentia a falta da sua elegância rude e da sua despreocupação preocupada. Também sentia falta de a amar: do unir dos seus corpos e respirações que parava o tempo, aquecia o peito e levava os problemas com uma rajada.

E Travis. Já seria um homem. As suas mãos teriam caules do trabalho e a face, marcas da vida. Mas também esperava que houvesse uma mulher - alguém cuja proximidade o amolecesse.

As palmas das mãos uniram-se. Não era um homem muito religioso, mas suplicou aos ventos da noite para lhe trazerem notícias da família. Oh, brisa que dás vida aos homens! Passa por Ankor e volta, peço-te! Peço-te que ainda estejam vivos e com saúde!


______      No próximo capítulo - A partida da prisão/o começo da missão!   _______


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As Profecias da Tempestade I - A Ponte ProibidaOnde histórias criam vida. Descubra agora