Capítulo 2

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Um mês depois.

Dentro de uma ambulância, Julie faz um check list do material, já no fim do seu piquete.
Quase com a cabeça enfiada no saco de abordagem, faz contagem e verifica se está tudo em ordem. Abre um fecho e passa os dedos pelos objetos, olhando e verificando se tem de repor algum item. Fecha aquele lado e abre outro, repetindo o processo.
Volta-se para as gavetas e prateleiras, espreitado e passeando os dedos, completamente focada no que está fazendo. Tira material de um lado e organiza, abastece outra gaveta, arruma umas coisas que tirara de outro lado, aproveita para reforçar a limpeza e desinfeção.
E ali está completamente abstraída, durante algum tempo.

- Julie? - Chama o seu comandante e Julie dá um salto, levando a mão ao peito com o susto que apanhou, já que parecia estar noutro planeta. - Está aqui alguém que pretende cumprimentar-te.

Julie arruma o pouco que tinha em desordem, apaga as luzes da célula sanitária e espreita antes de sair da ambulância, chega ao pé de quem a aguarda, com um largo sorriso.
Junto dele, que a espera com as mãos nos quadris, estão dois homens envergando fato e gravata. Um deles, de aparentemente sessenta anos, muito bem conservado para a idade, alto, cabelo loiro escuro e de olhos azuis, com um sorriso que ilumina os olhos, e o outro mais novo, (Jesus Cristinho, o homem é um pedaço de mau caminho), mais alto que o outro, com o cabelo castanho e os olhos de um tom acinzentado, com um ar sério, austero, e a olhá-la fixamente.

- David, como vai isso? - Ela dá um abraço ao homem que salvara a vida, há cerca de um mês atrás e feliz por vê-lo bem.

Falam em português. David responde-lhe com um sotaque engraçado, numa ligeira mistura de inglês, português e português brasileiro.

- Julie, vim agradecer-te pessoalmente. Este é o Hector Mills, o meu assessor, com o qual falaste. - Aponta para o homem ao lado dele. - Felizmente não sofri nenhuma lesão no acidente, mas após a paragem cardíaca terei de ser vigiado. Nada que inspire cuidados de maior. - Faz um gesto com a mão a desvalorizar o acontecido.

- Olá, Hector. - Aperta-lhe a mão e aprecia o belo gajo que estava à frente dela. (Jesus, que pão!) - Fico contente com as notícias, David.

Depois de ficar viúva, não pensava em voltar a relacionar-se tão depressa, mas apreciava os jeitosos que passavam por ela, que não eram poucos, diga-se de passagem.

O que é bonito é para se ver, né?! (Estou a erguer as sobrancelhas várias vezes.)

- Prazer em conhecê-la, Julie. Obrigado, por me ter contactado a informar o sucedido com senhor Silverdale.

- Julie, como forma de agradecimento, eu queria recompensar-te. - Sorri.

- Ah, David, nem pense. Não vou aceitar uma recompensa monetária. - Julie abana a cabeça, negando e levanta a mão. - Não.

- Eu sei que tens dificuldades, Julie. - Retruca David.

- A minha missão, enquanto bombeira, é esta e não vou aceitar dinheiro por lhe salvar a vida. Está fora de questão, David. - Responde, já passada da marmita, e a ficar corada com a situação, pois sentia-se encabulada, como se costuma dizer.

- Pronto, eu percebi o teu ponto de vista e respeito-o. Mas quero apresentar-te outra proposta para te recompensar. E espero que reconsideres esta. - Sorri. - A Silverdale tem vários sectores empresariais, entre os quais um hospital privado e uma secção de paramédicos. Gostava que aceitasses ir para a Silverdale Paramedics. Adoraria que fosses fazer um intercâmbio, ou estágio, o que lhe quiseres chamar, e pudesses ter a experiência de transmitir e adquirir conhecimentos. Remunerado, claro. Entramos em consenso com a tua corporação e vais para os EUA com uma licença sem vencimento. No tempo em que estiveres na Paramedics, eu pagar-te-ei o ordenado e, ao mesmo tempo, farei uma contribuição para a tua corporação. O que me dizes? - David olha atento para Julie.

Julie devolve o olhar para o homem e começa a pensar nas vantagens e nos inconvenientes que aquela viagem lhe traria. Cruza os braços na frente do peito e respira fundo, sentindo o peso do olhar dos três pares de olhos sobre ela. Pestaneja lentamente e tenta visualizar imagens imaginárias de como poderá ser aquela experiência.
Se aceitar, afasta-se do ambiente que a faz recordar Michael constantemente, abre novos horizontes, viaja e desanuvia, enquanto também consegue ajudar a sua corporação com a compensação financeira.
Se recusasse, nem teria noção do que estaria a perder. Estaria a manter-se a salvo na sua zona de conforto, sem arriscar, vivendo na monotonia do seu dia-a-dia, em que predomina o casa-trabalho-trabalho-casa, e, quando o frigorífico fica vazio, ter de ir às compras.
Respira fundo e olha para o seu superior.

- Há possibilidade disto? - Julie pergunta ao seu superior. - É possível eu ir de licença, não ficarei a fazer falta?

- Convocamos uma reunião com a direção, mas, à partida, acho que podes e deves aproveitar. Vai fazer-te bem e cá nos arranjamos, se precisarmos de mais um operacional.

Duas semanas depois daquele reencontro entre Julie e David, após resolver todas as pendências antes de se ausentar, Julie começa a fazer as malas.
Abriu-as em cima da cama e ficou especada a olhar, durante algum tempo, porque nem sabia o que iria meter ali dentro. Revirou os olhos, foi até ao roupeiro e procurou algo mais apresentável, quer dizer, algo que não fossem t-shirts, jeans e pijamas. Riu-se dela própria, depois de pensar que a roupa dela era, praticamente, jeans, t-shirts e pijamas.

Teria de ir às compras... De roupa.
Pior ainda do que ir às compras de comida.
Credinho.
Juntou tudo o que era essencial, mais uns sapatos, ténis, claro, e fardas.

- Prontinho. - Julie bate as mãos, uma na outra, terminando aquela maratona.

Teve permissão para ir à aventura e ver no que aquilo lhe traria. De certeza que lhe enriqueceria o Curriculum, claro.
De resto, logo se via.

- Seja o que Deus quiser. - Sussurra para ela mesma.

Na véspera do embarque reúne-se com a sua família, o seu pilar de suporte. Eles fizeram a maior pressão para que ela aceitasse aquela proposta. A mãe pediu-lhe para que ela refletisse sobre o que havia de positivo e negativo e tiveram um debate. Era sempre assim; sempre que alguém estava num dilema, faziam um debate. O pai até chegou a ralhar com ela, como se ela tivesse oito anos de idade, novamente, porque ela estava a cismar com o que poderia correr mal. Foram todos de acordo com aquela oportunidade.

Todos!

Enquanto falavam sobre a viagem e ela se lembrava de encontrar mais algum inconveniente, todos insistiam fervorosamente para que aceitasse.
Nestes três anos eles foram incansáveis para conseguir fazer com que Julie ultrapassasse o embate da morte de Michael.
Não sabia o que seria dela, se não tivesse aquela família maravilhosa.

Um jantar regado com lágrimas das saudades que por aí viriam.

Pensamento positivo.
Naquele momento, Julie não tem nada a perder.
E um ano passa a correr.

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