No dia da mudança para a casa da tia, Ana Clara pediu a ajuda de Melissa. As duas passaram o dia indo e vindo, carregando a mudança em pequenas viagens no velho carro de Yolanda, que chorou o dia inteiro, conforme o quarto da filha ia se esvaziando. Durante os últimos meses, havia tentado de tudo para convencê-la a ficar, sem sucesso.
Alice também colaborou, dobrou algumas peças de roupas e organizou a cômoda no quarto novo da irmã. Espalhou frascos de perfumes e cremes de Ana Clara sobre a penteadeira e parafusou o armário de seu banheiro. Estava quieta e introspectiva. Só ela sabia o que se passava em seu coração. O quanto segurava o choro toda vez que a irmã a olhava com carinho enquanto ela ajudava com as coisas naquele lugar, onde daquele dia em diante, seria seu novo lar.
Em alguns momentos ela se encheu de coragem e quase voltou atrás. Talvez ainda fosse possível corrigir o erro. Como lhe doía a separação. Muito mais que ela imaginara. Como se lhe arrancassem um pedaço.
Mas já estava decidido, não houvera chance de ser diferente um dia, e nem haveria, mesmo naquele momento, sentindo seu coração partir-se ao meio, ela ainda não tinha coragem o suficiente para reagir. A mesma coragem que lhe havia faltado no passado para ficar do lado da irmã. Ela fora covarde, ela ainda era.
O passado voltou em sua memória como uma bomba. Tudo havia começado há alguns anos antes. Quando a vida das irmãs ainda era boa e inocente. Na época em que ainda viviam grudadas. Quando dormiam juntas no chão da sala, sob os protestos da mãe. Passavam à tarde na calçada, jogando conversa fora. Iam juntas ao centro da cidade para visitar as lojas e tomar sorvete. Quando faziam tarefa jutas e brigavam por qualquer coisa, brigas sem importância, que duravam muito pouco. Até aquela noite, aquela maldita madrugada.
Alice levantou a cabeça do travesseiro, ainda meio zonza pelo sono. Alguém estava chorando, sentou-se na da cama, assustada. Abriu a porta do quarto sem fazer barulho, o som não vinha do quarto da mãe. Era Ana Clara. Um arrepio percorreu sua espinha. Correu até o quarto da irmã. A porta estava trancada. Mas ela nunca trancava a porta. Bateu de leve. A irmã não abriu. Bateu mais uma vez, nada. Ainda podia ouvir seu choro abafado.
Encostou os lábios na fresta da porta. Sussurrou o nome da irmã por várias vezes até ela finalmente atendê-la. Seus olhos estavam inchados de tanto chorar.
_ O que aconteceu? Porque está chorando? Está sentindo alguma dor?
Ana Clara demorou a responder, estava muito nervosa.
_ O pai.
_ O que tem o pai?
_ Alice... Alice... Ai meu Deus do céu...
O coração de Alice batia acelerado, o corpo em estado de alerta, cada fibra pressentindo algo de muito ruim.
_ Fala Ana! O que aconteceu? O que tem o pai?
Ana Clara lutava para falar, mas a emoção e a vergonha a impedia. A irmã não podia compreender as palavras que saíam embaralhadas de sua boca.
_ Calma... Respira. Respira. Tá tudo bem... Eu estou aqui. Vai ficar tudo bem. Prometo.
Depois de algum tempo Ana Clara parou de chorar. Olhou em seus olhos e disse as palavras que mudariam para sempre as suas vidas.
_ Eu acordei e o papai estava me tocando...
Alice tinha ouvido com clareza, mas não podia ser. Não seu pai. Nunca.
_ Como assim? Não fala bobagem. Que história é essa?
_ Eu estava dormindo, mas acordei com alguma coisa tocando meu corpo. Pensei que fosse o nosso gato. Abri os olhos e o papai estava sentado na beirada da minha cama, com a mão na minha...
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Muito prazer... Sou sua filha
Roman d'amourMelissa é uma adolescente teimosa e inteligente, que vive sua adolescência na ingênua década de noventa. Numa rua arborizada da periferia, entre a escola, primeiro namoro, os amigos e as brincadeiras de rua comuns da época, ela cresce insistindo no...