6 | Falcatruas na merenda

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Hudson e Arianne tinham razão: havia um caroço naque­le angu chamado licita­ção. O prefeito Jalmir Barreira nome­ou pessoas suas e as colocou na Co­missão Perma­nente de Li­citação, que redigiram um edital de compra de carne e deri­vados para as escolas da rede, para que somente o Frigorífico Trindade, de propriedade de Eurí­pedes Trindade, fosse o vence­dor do certame.

Eis a conversa de Jalmir com Eurípedes por telefone:

– Alô, Eurípides.

– Fala, Jalmir.

– Companheiro, eu tenho uma notícia boa procê. A CPL publi­cou o edital na internet e ele tá direcionado pro seu fri­gorífico. O pregão é só uma formalidade.

– Maravilha!

– Qualquer dia desses, aparece lá em casa pra gente co­mer uma linguicinha de porco e to­mar uma cachacinha.

– Beleza, então. Um abraço.

– Outro, compadre!

Eurípedes era padrinho de Jalmir Júnior, filho do manda­tário municipal e secretário de Cul­tura, Turismo e Esporte. O empre­sário foi o maior patrocinador da campanha do seu compa­dre para a cadeira de prefeito e este retribuía o favor.

A secretária de Educação, Karine Barreira, montou um esque­ma para desviar dinheiro da merenda escolar que funcio­nava da seguinte forma: um grupo de diretores das escolas prepa­rava o edital da chamada pública para a compra de hortifrutigranjeiros produzidos por produ­tores rurais locais, com recursos federais.

Mas o certame era direcionado para os mesmos produto­res, vendendo itens com 200% mais caros. Para participar do esque­ma, os agricultores pagavam propina de 20% do valor li­citado, descontado pelos diretores na hora do pagamento e entregue à Karine.

Os hortifrutigranjeiros fornecidos às escolas da rede munici­pal eram de péssima qualidade, alguns deles exalando mau chei­ro, mofados e comidos de bichos.

Como não bastasse, havia o desvio de alimentos não perecí­veis, de carnes e embutidos do almoxarifado da SEMED e da Co­zinha Piloto Municipal (responsável pelo preparo da meren­da para as escolas unidocentes da zona rural que não tinham cozi­nha própria) para os churras­cos da família Bar­reira e seus alia­dos. Para os educandos, só sobravam o ma­carrão com salsi­cha e ovo ou rosquinha com achocolatado.

Os mecanismos de controle social da Educação da cidade, como o Conselho Municipal de Educação, o Conselho Muni­cipal do FUNDEB e o Conselho de Alimentação Escolar, só existi­am no papel, mas não cumpriam seu papel de fiscali­zar, porque seus conselheiros eram sub­servientes ao prefei­to. O Departamento de Acompanhamento e Fiscalização dos Caixas Escolares Coordena­ção de Caixas Escolares da SEMED era chefiado por Juarez, alia­do de Jalmir Barreira, que fazia vistas grossas às

Gerusa era uma merendeira preocupada com os alunos e não se conformava com os des­mandos da administração municipal. Mal sabia o que lhe aguardava. Como fazia diaria­mente, Gerusa abriu o freezer e pegou uns pedaços de costela para prepa­rar uma sopa, mas estes estavam contami­nados com larvas e os jogou no lixo. Carmen, ao ver aquilo, entrou na cozinha e gritou:

– Você tá jogando a carne fora?

– Carmen, a carne tá com bicho. Não vou servir isso aos alu­nos.

– Era só lavar a carne e tirar os bichos com a faca, velha retar­dada. É imbecil e incompe­tente, não sabe fazer nada di­reito. To­mara que a prefeitura coloque você e suas co­legas em disponibili­dade e tercei­rize a produção da merenda.

Não era a primeira vez que Carmen faltava com respeito à me­rendeira. As sessões de assé­dio moral eram constantes, porque ela apoiou a campanha de Fábio Brito, deputado es­tadual e con­corrente de Jalmir Barreira nas eleições de 2012.

A merendeira chorou de desgosto e sofreu um infarto dentro da escola. Foi levada às pres­sas para Santa Casa de Pie­tro Taba­chi, em estado gravíssimo e foi para UTI. Henri­que, Hellen e as irmãs do círculo de oração de sua igreja fize­ram uma intercessão para que restabelecesse a sua saúde. Henrique liderou o clamor:

– Senhor Deus, Excelso Pai, que está nos céus. Nós Te louva­mos, por estarmos em Tua pre­sença. Nós Te apresentamos a Tua filha Gerusa, que jaz enferma, entubada nesta UTI. A Tua palavra nos diz que a oração de um justo pode muito em seus efeitos. Es­tende, ó Deus as Tuas mãos de poder, mani­festa a Tua glória nes­te lugar, joga por terra toda a enfermi­dade, que ela seja curada para a honra e glória do Teu nome. É o que nós te pedimos, cren­do na vitó­ria, em nome de Jesus, amém.

Não houve aula no Amylton, por causa do feriado de Nos­sa Se­nhora da Penha. O dia estava cinzento, porque o cora­ção da gene­rosa merendeira Gerusa pa­rou de bater e ela foi para o Senhor, às 07h30min.

Quando Henrique foi para casa de Arianne e contou para ela que a Gerusa morreu, a jovem se jogou no chão e come­çou a cho­rar, gritando:

– Carmen, maldita! Assassina! Assassina! Ela matou a Tia Ge­rusa! Tomara que ela tenha um triste fim!

Às 11 horas, o corpo de Gerusa chegou à sua casa para ser vela­do. Ela deixou esposo, três filhas e duas netas. A tristeza era mui­to grande. Uma das filhas desmaiou. Hellen não con­seguia chegar perto do caixão. Tudo o que ela menos queria era ver a Gerusa morta. Ela nunca chorou tanto em sua vida pela perda de uma pessoa tão querida.

Às 16 horas, o corpo de Gerusa saiu de sua casa e seguiu em cortejo na Caravan da funerá­ria, em direção ao Cemité­rio de Pie­tro Tabachi. Pelo caminho, as pessoas cantaram o hino A cidade santa.

- Dormindo no meu leito/em sonho encantador/um dia eu vi Jerusa­lém/E o templo do Senhor/Ouvi cantar crianças/e em meio a seu cantar/rompeu a voz dos anjos/do céu a proclamar/jerusalém! Jerusalém! /Cantai, ó santa grei! /Hosana! Hosana! /Hosana ao vosso Rei! /Então o sonho se alterou/não mais o som feliz/ouvia das hosanas/dos coros infantis/o ar em torno se esfriou/do sol faltava a luz/e num alto e tosco monte vi/o vulto de uma cruz! /Jerusalém! Je­rusalém! / (Aos anjos escutei) /Hosana! Hosana! /Hosana ao vosso Rei! /Ainda a cena se mudou/surgia em resplendor/a divinal cida­de/morada do Se­nhor/Da lua não brilhava a luz/nem sol nascia lá/mas só fulgia a luz de Deus/Mui pura em seu brilhar/e todos que queriam, sim/podiam logo en­trar/na mui feliz Jerusalém/Que nun­ca passará/jerusalém! Jerusalém! /Teu dia vai raiar! /Hosana! Ho­sana! /Hosana sem cessar!

Às 16:30, o corpo de Gerusa foi sepultado sob forte emoção e o povo cantou o hino Sou feliz.

- Se paz, a mais doce, me deres gozar/se dor, a mais forte, sofrer/oh! Seja o que for Tu me fazes saber que feliz com Jesus sempre sou/sou feliz com Jesus/Sou feliz com Jesus, Meu Senhor/Embora me assole o cruel Sa­tanás/E ataque com vis tentações/oh! Certo eu estou que, apesar das afli­ções/que feliz com Jesus eu serei/a vinda anseio do Meu Salvador/Em bre­ve, Ele vai me levar/ Ao Céu onde vou para sempre morar/com os salvos por Cristo Jesus/Eu sou fe­liz...

Cínica e hipocritamente, Carmen estava em Vila Velha, na Fes­ta da Penha rezando e pedin­do graças. Já dizia a música Sorte Tem Quem Acredita Nela, de Fernando Mendes: Não adi­anta ir à igreja re­zar e fazer tudo errado...

Os senhores da fome [COMPLETO]Where stories live. Discover now