"Quem você será quando não houver ninguém lá?
Quem é você hoje? Porque eu continuo a mesma".Tá, eu admito. Eu exagerei. Tenho exagerado. Mas tu não seja uma dessas pessoas que julga a vítima pelo medo dos traumas. Só quem viveu, sabe. Eu tô mesmo traumatizada porque de uns anos pra cá a vida parece que decidiu me puxar pelo cabelo e ensinar uma lição. Mas não do jeito bom, no bom sentido, se é que cês me entendem. Normal que a minha fé dê uma abaladinha, né? Se tu tiver procurando aliens, tu vai assistir Star Wars. Aqui, a protagonista sou eu, e eu sou só humana. Por mais que não pareça, em alguns momentos. Com esses olhinhos afastadinhos e a altura de boneca LOL, eu daria um bom etê. Mas no final, o papel que me sobrou foi esse.
O de trouxa.
Fazer o quê? Cada um sabe onde sua habilidade tá.
— Tira esse sorriso da cara.
— Mas eu nem tô sorrindo.
Mentira, eu tava sim. Tava que não cabia dentro de mim, pela ansiedade que vinha e batia no peito de dentro pra fora, e eu não conseguia controlar. Tava sorrindo e não tinha motivo pra sorrir, eu tava completamente perdida e sem saber o que fazer nem pra onde ir, mas ainda assim eu tava sorrindo. Porque ela ia ficar.
Júlia estreitou os olhos enquanto me encarava, e logo depois respirou fundo, empurrando no meu peito a pasta com o prontuário, enquanto torcia os cabelos escuros (ainda não me acostumei a vê-la sem aqueles dreads vermelhos).
— Ela tem uma lesão no lobo temporal, Ana. — retrucou — Sabe? Aquele responsável pelo processamento da memória? Pelas respostas emocionais, aprendizado e outras coisas? — enfatizou — Você sabe o que isso significa. — revirou os olhos — Por isso tire esse sorriso da cara, ela não faz ideia de quem é você. Não tá ficando por sua causa. — suspirou — E pode não dar pra reverter.
Viu? A vida dá rasteira atrás de rasteira. E tu não quer que eu tenha trauma?
Absorvi suas palavras enquanto encarava as folhas dos exames, passando as folhas uma por uma enquanto observava com atenção até exagerada, procurando algum detalhezinho que pudesse passar despercebido.
— Dra. Silveira disse que poderia ser temporário. — retruquei.
— Porque lesões nessa parte do cérebro geralmente causam problemas de audição, ou no mínimo, no emocional. Afetar a memória é algo raro. — falou — E você, melhor do que ninguém, deveria saber do outro lado da moeda.
Revirei os olhos.
— Não é porque eu fiz medicina que eu tenho que pensar cientificamente o tempo todo não. Outra, que isso já faz muito tempo, e eu nem cheguei na metade do curso. — retruquei de novo — Nem tudo tem que ter uma explicação lógica. — suspirei, apertando o prontuário nas mãos — Pelo menos, ela não ficou surda.
— Ainda bem que não.
Soltei o prontuário num pulo ao ouvir a voz vinda de trás. Júlia pegou o prontuário de volta, e eu virei pra trás lentamente. Imagine a situação daqueles filmes de terror besteirol, ou de desenho animado, que o mocinho abestado tá falando um monte de besteira de alguém, e aí de repente todo mundo fica com cara de burro quando foge, e o mocinho vai e pergunta: "ela tá bem atrás de mim, num tá?"
Meu coração tava na mão e eu quis engolir minha língua de volta, mas Cecília tinha uma expressão divertida enquanto me encarava. Bruno, por outro lado, me olhava como se tivesse numa mistura de decepção e tédio, enquanto empurrava a cadeira de rodas em que ela tava sentada.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O l v i d a r
Fiksi PenggemarConsequences pt. II Ela veio calmamente dessa vez. Lentamente. Silenciosamente. Tão silenciosa que quase não a encontrei. Mas sua presença ainda era muito pesada para não ser sentida por mim. Eu ri como se soubesse o que estava acontecendo. Aquele...