Primeiro Capítulo: Guilherme

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A única coisa que odeio no meu trabalho é a parte burocrática. Tantos papéis sem nexo, quando o que se precisa é de uma lista básica e uma boa memória.

Balancei a cabeça em descrença ao analisar a planilha no computador. Meu avô costumava me ensinar no cotidiano o valor das pessoas. A regra era não confiar somente nas aparências e sempre desconfiar dos mentirosos. Uma pessoa que mentiu uma vez, pode repetir a façanha. Alguns pensam que é besteira, porém o velho José dizia que bom negócio se realiza olho no olho. Uma prosa acompanhada de um cafezinho e biscoito caseiro. Ainda continuava afirmando que a modernidade estragou o trem tudo.

— Patrão, tem um pessoal perdido.

Peguei meu chapéu, saboreando o fato de escapulir dos transmites, mesmo tendo consciência que a compra da ração não poderia ser deixada para o amanhã.

Maldita hora que o administrador pediu demissão!

— Boa tarde, vim entregar as máquinas — o homem disse sem rodeios.

Analisei com interesse os tratores, houve uma época que nossa fazenda investira na agricultura, principalmente na plantação de café. Mas no mundo de negócio tudo era possível e mesmo que tivesse interesse de recomeçar não teria dinheiro suficiente e terras.

— Estão na fazenda errada, essas belezuras são do Conrado — afirmei.

— Mas, ele pediu para tratar com um tal de Guilherme Souza.

Franzi o cenho, cruzando os braços. Um tal?

— Já está falando com ele — retruquei em tom rude. Se tem uma coisa que detesto na vida é ser tratado com desdenho. Eu não tinha sido um mero moleque sortudo, pelo contrário, vi meu avô sofrer com a perda de grande parte das nossas terras dispostas somente para a agricultura. E como um tsunami um percentual incalculável de nosso gado foi perdido, assim como os problemas financeiros triplicaram com o banco e a seca que castigou o legado de José Souza.

O homem arregalou os olhos por um instante, parando de mascar. Com certeza meu rosto não era amigável, ou talvez ele esperasse alguém mais velho, embora eu já estivesse caminhando para meus vinte e oito anos.

— Pois então, o senhor ficou responsável pelo contrato.

Assenti, recordando da conversa que tive com Conrado em junho. Quando assumi esse compromisso ainda tinha o infeliz do administrador, mas Rubem era um ignorante e preferiu aceitar a proposta do Monteiro.

Eu deveria ter quebrado a cara do infeliz!

Meu avô tinha razão sobre os tempos de hoje. Saudade danada da confiança, palavra de honra. Porém, Monteiro nunca tivera essa qualidade.

— Vamos para o escritório — disse, interrompendo os pensamentos desagradáveis. Em questão de minutos imprimi os documentos, confirmando o valor negociado com Conrado. A criatura ainda demorou para assinar, mas entendia sua leve desconfiança.

— Pronto — ele falou, entregando os papéis assinados.

Assim que ele se retirou, voltei-me a planilha.

Eu sempre imaginei que minha vida nessas terras fosse apenas tranquilidade. Um sonho de garoto? Mas tive que aprender que pegar na enxada somente não adiantava. Na escola aprendi sobre a crise de 29 e as consequências que muitos fazendeiros tiveram naquela época, e depois com o alavancar econômico várias famílias perderam suas terras aos latifundiários. Meu avô contava que durante a infância viu muitos amigos do pai irem morar na cidade grande e trabalhar na indústria. José repetia que a família Souza tinha coragem e, por isso, não perdemos nossa dignidade.

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