Onze horas da noite. A ceia de natal estava começando a ser montada na mesa. Ninguém estava aguentando mais de fome.
Todos estavam meio bêbados. O tio Fernando já estava contando a velha história de como foi para fora do país e foi confundido com um ator famoso.
— Eles disseram: "mas você não é o Adam Sandler?" — ele falou alto, gargalhando — Não, moça, mas eu posso te mostrar o meu click!
Minha mãe, meu pai e os outros riram um pouco, por educação. Além de saberem as palavras de cor e salteado, Fernando era um idiota e nojento. E por isso, com certeza, morreria sozinho.
Fui para o quarto, de fininho. Peguei meu celular e vi se tinha alguma mensagem. Nada.
Talvez ela estivesse ocupada. Ou o celular ficou descarregado. Ou esteja sem sinal. Ou...
Chega! Não posso ficar pensando nisso! Senão vou ficar maluca!
Cliquei na foto de perfil dela. Como era linda! Os lábios carnudos formavam um sorriso tímido. O cabelo estava meio bagunçado e a pele corada. Podia ficar olhando para ela o dia inteiro.
— Clara! Vem ajudar a arrumar a mesa! — gritou minha mãe.
Desliguei a tela do celular e saí. Às vezes ficava pensando se a minha família conhecesse a Paula. Se eu não falasse nada, pensariam que é apenas uma amiga.
Suspirei, cansada. Uma hora ou outra eu tinha que falar, mas não era assim, tão fácil. Fantasiar a situação na minha cabeça era simples, porém, realmente fazer era assustador.
Quando conheci a Paula, eu não sabia o que eu era, entretanto, já desconfiava. Quando criança, as outras meninas perguntar se eu gostava de algum garoto. Eu só queria brincar e não sentia nada por ninguém. Então, falava um nome aleatório de um menino da classe.
Já anos mais tarde, eu tinha uma amiga. Ela era linda, charmosa e usava um ótimo perfume. Eu gostava de ficar sentindo o cheiro e, de vez em quando, me pegava olhando para o rosto dela.
Talvez eu não queria admitir, mas o sentimento se tornou claro quando conheci uma garota no clube do livro. Paula exibia inteligência e charme, assumindo-se abertamente bissexual. Perguntei-lhe como falou aos pais da sexualidade. Ela me disse que foi bastante difícil e sua mãe ainda não havia aceitado. Todo mundo da família a tratava estranho. Estava começando a cogitar ir embora de casa.
Paula me disse de um projeto chamado Casa 1, que abrigava pessoas da comunidade LGBTQIA+ na cidade de São Paulo. As vagas eram poucas, porém, era um porto seguro. Uma esperança.
Terminamos de montar a mesa e todos sentamos. Antes de comer, fizemos uma oração, agradecendo pela comida e pelo ano.
— Então, Clara, como vai a escola? — falou tia Marta, depois de começarmos a comer. Todo ano ela fazia a mesma pergunta.
— Está tudo bem — respondi, vagamente, colocando a salada no prato.
— Vera, a menina já está na idade de ter namorados — comentou ela com minha mãe — Toma cuidado, viu?
— Ah, ela é uma menina dedicada...
— Sabe, um dia lá na loja, uma garota apareceu — Marta interrompeu, passando a mão no cabelo, isso significava que começaria a contar uma fofoca — Com o cabelo cortado igual homem, um piercing no nariz como um boi e de mão dada com uma outra menina! — exclamou, como fosse a coisa mais errada do mundo — E sabe quem era? A filha da dona Neuza!
Minha mãe demonstrou surpresa.
— A filha da dona Neuza? Mas ela era tão certinha...
Eu estava quase dando um soco na cara da Marta. Que ridículo! Agora, andar com uma menina era errado? O que qualquer um tinha haver com isso? As garotas estavam fazendo algum mal a alguém?
E por fim, a tia soltou a pérola:
— Ainda bem que Clara é uma menina direita e não se junta com esse tipo de gente...
— Chega! — Aquilo foi demais. Levantei e bati as mãos na mesa. As vasilhas de vidro tremeram e alguns copos caíram. — Chega!
Todos estavam me olhando, assombrados. Até tio Fernando parou de tomar vinho.
— Será que nem no natal vocês têm compaixão? — perguntei, estava quase espumando de raiva — Um dos únicos mandamentos de Jesus foi amar os outros como amam a si mesmos. E ele estava fazendo aniversário, sabiam? Com esses pensamentos, vocês fazem a morte dele ser em vão!
O silêncio reinava na ceia dos Silveiras. Era engraçado, pois todos olhavam para qualquer lugar, menos para mim. Todos fingiam que nada acontecia.
— Sério mesmo? Não vão falar nada?
Tia Marta não parecia muito afetada. Comia tranquilamente. Quando enfim engoliu, falou com calma:
— Pessoas que não seguem a vontade de Deus não merecem o nosso amor.
— E quem é você para saber a vontade de Deus? Quem? — Era inacreditável.
— Deus fala nas escrituras — ela continuou inabalável — Ele criou a mulher para o homem e essa é a verdade.
— A senhora nem sabe de nada! E se fosse assim, Ele não criaria pessoas que não seguem tal regra ridícula!
Enfim esboçou uma reação. Ela levantou da cadeira e olhou para mim, furiosa.
— O diabo fez essas criaturas hereges! E você, protegendo elas, também está blasfemando!
Balancei a cabeça, exausta.
— Quem está blasfemando é você, tia! Você!
Então, a mão dela voou na minha cara, estalando. Minha cara virou com a força. A pele ardeu.
— Marta! — gritou mamãe.
— Tenha respeito com a sua tia, menina! — rosnou ela.
Encarei-a, cheia de ódio. Respirei fundo. Ela não iria me intimidar tão fácil. Entretanto, eu ainda tinha algo para dizer:
— E eu sou lésbica, achei que deveria saber.
E... mais um tapa. Foi mais forte que o anterior. A mão gorda dela tomou todo o lado esquerdo do meu rosto.
— Marta, pelo amor de Deus! — mamãe já estava se aproximando. Mas apenas observei minha tia por um segundo. Não conseguia mais reconhecê-la. Fui até o quarto, sem falar nada. Peguei meu celular e saí pela porta da frente, com eles me observando, impassíveis.
Ninguém foi atrás de mim. Comecei a andar pela rua, a esmo. Paula ainda não tinha me respondido, mas telefonei para ela do mesmo jeito. Fui atendida no segundo toque.
— Alô, Clara? — a voz dela ressoou, me confortando.
— Paula, você pode me buscar? — falei, quase chorando — Estou perto de casa.
— Certo, me passa seu endereço.
Desliguei e escrevi uma mensagem com o nome da rua. Sentei na sarjeta. Não podia compreender. Ninguém em nenhum momento tentou me defender. Minha mãe apenas ficou lá, gritando.
Pelo menos, contei logo a verdade. Senti-me livre, um pouco. O relógio marcava cinco minutos para o natal. Uma lágrima desceu pela minha bochecha.
Ouvi um som de moto e virei. Paula parou próximo de mim e tirou o capacete. O rosto demonstrava preocupação e quando enfim percebeu que eu estava chorando, se aproximou.
Levantei, colocando os braços ao redor dela. Ela me apertou forte e isso me fez chorar ainda mais.
— Vai ficar tudo bem — Paula dizia no meu ouvido — Eu prometo.
autoria de @Amoxina Sabrina Sousa
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all i want for christmas | ✓
Kısa HikayeEspecial de Natal com contos lgbt. Autores: @giges_ @escalart_cold @sacredmoon_cry @amoxina