Prólogo

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Eu sempre soube que morreria sozinho, deitado em posição fetal no chão frio de um banheiro, parece que as loucuras e desavenças do mundo ganham um contorno brando quando abraçamos nossos joelhos e fechamos os olhos, isso provavelmente tem a ver com o conforto do útero, aquele que conhecemos quando sequer temos ciência da vida, e do qual contrariamente não nos recordamos.

Sou confrontado e engolido pelo breu, mas apesar da agonia, isso de certa forma me traz paz. Com o ouvido colado no azulejo gélido e os olhos fechados, tento controlar a dor de alguma forma, suportando-a ou simplesmente ignorando sua existência. Posso ouvir o barulho da água percorrendo a tubulação sob o piso, provavelmente um sistema mal dimensionado. Ouvi dizer que isso tem a ver com velocidade, diâmetro e outras porcarias.

Talvez devesse ser engraçado pensar nessas coisas enquanto sente a vida escapando de si. Mas morrer sozinho tem seu lado bom.

Quão depreciativo isso parece ser, mas pode ocorrer de estarmos errados em relação a tudo, principalmente sobre esses pareceres superficiais.

Sempre soube que seria assim, sozinho e com frio, porque sempre flertei com a solidão. Há um lado egoísta nos meus pensamentos que repete que não vim ao mundo a passeio, isso significa dizer que não vim para fazer amizades ou perder tempo com falsa modéstia e educação. Meu psiquiatra diz que sou ligeiramente egoísta, ao passo que faz elogios ao meu QI, não sei como pode supor tantas coisas, nossas conversas geralmente são unilaterais, com apenas ele falando ou me observando estranho e inclinando a cabeça para um lado e outro... Bem, talvez isso não importe, ele não me importa, não o procuro por acreditar precisar dele, as consultas me foram impostas, uma condição qual aceitei por ter objetivos maiores. Não sei como cheguei a essa parte, já que não me interessa, mas penso agora que devo voltar para onde realmente pretendo chegar: minhas certezas. Sim, trata-se primordialmente disso. O banheiro... Percebi que seria nele desde que descobri o quão insano é tomar banho no escuro enquanto se ouve a nona sinfonia de Beethoven ou Across the Universe, dos Beatles.

No primeiro caso a explicação é simples: quando imerso num gesto costumeiro e ouvindo todos os altos e baixos da expressiva loucura de Ludwig, um medo absurdo e até bem fundamentado domina o meu corpo, de repente é como se somente esperasse pelo momento trágico, em que um louco ou um espírito aparecerá para me destroçar com uma faca ou aterrorizar ao ponto de eu não suportar o choque. Fico naquela apreensão, ensaboando-me vagamente e olhando constantemente para o vidro do boxe, tentando enxergar além do vapor da água fervente, e o que penso ver são vultos e até rostos aterrorizantes, mas tratam-se apenas de toalhas, reflexos e a minha mente brincalhona. O coração fica agitado; os olhos, atentos. Os músculos enrijecem ao mesmo tempo em que buscam relaxar embaixo da água aconchegante. Mas no final nada acontece, nunca. Fica apenas a sensação de impotência, a consciência de não possuir controle sobre nada, nem mesmo sobre o próprio corpo e mente.

Chega a ser engraçado, mas o medo nos paralisa. Muito se fala que depois do pavor vem a necessidade da sobrevivência, um estado que nos tira a humanidade e apresenta a real condição do homem: nada muito diferente que qualquer outro animal irracional. Não somos bons por natureza, o mal existe e está em nós, impregnado nas entranhas, sempre na eminência de vir à tona. O homem é o lobo do homem. Basta saber o que isso significa, se o mal é realmente mal, ou apenas uma ideia implantada em nossas cabeças, e se não o for: bem vindos a selva, salve-se quem puder. Os vencedores serão os verdadeiros espíritos livres, maravilhosamente porque estarão ligados a sua priori e terão destruído os ídolos.

Só o que quis dizer com essa primeira rápida explicação é que gosto de sentir medo, aprecio estas sensações intensas e que nos fazem retornar ao que somos. Parece loucura, e é justamente isso. Mas o faço pelo romance com o drama e o pavor, a agonia da aversão e dos caminhos tortuosos da consciência. É como vencer um gigante todo dia, ou ter a dose de adrenalina psicológica. Trata-se definitivamente de flertar com a insanidade.

WonderwallWhere stories live. Discover now