Suposições

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Era uma noite fria e chuvosa de sexta-feira, o trânsito tornara a cidade um caos, provocando assim o meu atraso de 10 minutos. Nunca havia ido a um concerto, mas logo percebi que são extremamente pontuais nesses eventos. Com a justificativa de que uma entrada inesperada poderia atrapalhar a apresentação, fizeram-me esperar no saguão a primeira música acabar, antes de procurarem um lugar para mim lá dentro. De todo modo, a espera não foi ruim. O Teatro da Cidade era um ponto turístico, uma construção histórica, e eu nunca estivera ali, então me dediquei a dar algumas voltas pelo lugar, apreciando a arquitetura clássica.

O afresco no teto da entrada principal era de uma beleza extasiante, as estátuas espalhadas pelos vários pontos me provocaram um intenso encanto. Tudo era lindo. Até as gárgulas possuíam algo de muito belo em suas aparências demoníacas. Meus olhos se preencheram de um encanto absurdo enquanto, deslumbrada, atrevia-me a vagar por ali, perdida em sentimentos limerentes e na prazerosa sensação de uma solidão que, naquele instante, era muito bem-vinda, visto que o silêncio e o vazio tornaram tudo mais intenso.

Ainda não compreendia muito bem o que me levara àquele lugar, só sei que quando dei por mim, estava girando lentamente pelo salão do Teatro, vestida em cetim preto e de salto alto. Talvez, realmente, enquanto ainda no táxi, tivesse me recriminado por tomar uma decisão tão precipitada e agido simplesmente pelos sentidos. Mas agora, algo me dizia que eu não poderia estar em outro lugar, senão ali. O encanto que experimentei foi tamanho, que nada mais importava. Eu estava lá, e tudo bem.

Quando finalmente me chamaram, senti uma pontada aguda no peito, não sei se pela ansiedade pelo que se revelaria logo diante de mim, ou se por abandonar a observação prazerosa que me levava ao êxtase e, simultaneamente, tranquilidade. Guiaram-me por uma escada, depois por um corredor.

Antes de abrir a pequena porta diante de nós, a moça informou que conseguira uma cadeira nas frisas, e eu apenas consenti, sem saber direito o significado disso. Mas ao me revelarem o tal lugar, um camarote com 4 cadeiras no andar térreo, muito perto do palco e separado da platéia, percebi que havia sido privilegiada pelo meu atraso. A princípio fiquei contente, é claro. Comprara um assento no balcão superior, e agora estava em um dos melhores lugares, com uma visão perfeita dos músicos e do público.

A sala imensa com quatro andares de balcões estava silenciosa, apesar de cheia. O clima clássico do ambiente tornava tudo mais deslumbrante. No palco, haviam homens e mulheres, todos vestidos perfeitamente em trajes sociais e segurando com atenção os instrumentos. Tão logo sentei na cadeira acolchoada com veludo vermelho, o maestro deu o sinal de que a próxima música se iniciaria. Os minutos seguintes foram maravilhosos para mim. Toda a noite, do meu ponto de vista, estava saindo melhor do que poderia um dia imaginar.

Perguntei-me porque nunca havia feito esse programa. Eu teria sido muito feliz se tivesse assistido a concertos antes, embora as sensações fluindo por mim fossem de uma alegria melancólica. Ouvi falar, certa vez, que para os artistas e poetas, o sofrimento é mais produtivo que a felicidade; a dor inspira. Naquela noite, pude compreender isso. Compreendi como a angústia pode ser transformada em algo sublime. Sempre gostei de música clássica, sempre adorei ouvir as composições melancólicas de Bach no conforto do meu quarto, mas nenhuma das sensações experimentas outrora pode se comparar as que frutificaram meus sentimentos enquanto ouvia a Orquestra tocar.

Ainda não vira Sasuke entre os músicos, e não porque fui incapaz de encontrá-lo entre tantos outros, visto que haviam poucos violoncelistas. Não o encontrara, simplesmente porque ele foi chamado depois para o palco. Sasuke não mentiu quando disse que substituiria o violoncelista principal. Diante de um público ansioso, ele foi anunciado para tocar uma composição em especial: A. Piazzolla, Oblivion.

WonderwallWhere stories live. Discover now