Ínicio do Fim

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Um ano antes

"A história de todas as sociedades que já existiram é a história de luta de classes.

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, chefe de corporação e assalariado; resumindo, opressor e oprimido estiveram em constante oposição um ao outro, mantiveram sem interrupção uma luta por vezes aberta...".

Minha atenção foi desviada da leitura e dos Beatles que cantavam a toda altura em meu celular, quando a primeira gota d'água caiu exatamente sobre a palavra que pretendia ler em seguida. A segunda e a terceira vieram rapidamente, amarrotando um pouco a página amarelada do manifesto comunista e num intervalo curto demais para que eu tivesse algum tempo de pensar, antes de interromper a caminhada, tirar os fones do ouvido e erguer o rosto para enfim notar as nuvens negras que pairavam sobre a cidade.

As gotas de chuva que se seguiram, mais violentas que as antecessoras, não mediram esforços para molhar minhas bochechas e escorrer por elas em direção ao meu queixo.

Baixando a cabeça, fechei o livro com pressa, disposta a vencer rapidamente o jardim que separava o portão principal da entrada do prédio. Tinha o forte costume de preferir andar sobre a grama, ao invés da trilha asfaltada, assim como mantinha o hábito não convencional de ler durante o breve trajeto que antecedia o dia de trabalho intenso.

Antes que tomasse a decisão de correr para fugir da evidente possibilidade de ficar completamente molhada, meu corpo foi protegido por um enorme guarda-chuva. O segurança aparecera para me socorrer, aparentemente se dirigia ao prédio para buscar alguma coisa.

Não fazia mais de um minuto que passara por ele na portaria, indignando-me pela milésima vez com seu bom dia expresso em um singelo aceno com a cabeça. Não conseguia me adaptar ao fato de ele sequer se esforçar para abrir a boca e falar um simples "bom dia".

Não recusei a ajuda, mas também não esbocei nenhuma demonstração de gratidão. Mantive-me calada ao segui-lo.

— Não deveria ler esse tipo de besteira — Ele disse, após me guiar até o acesso e deixar a salvo da garoa que ganhara intensidade e se transformava numa tempestade.

Seus lábios se contornaram num sorriso sarcástico. Talvez estivesse acreditando que eu poderia gostar desse tipo de brincadeiras, ou muito possivelmente apenas apreciasse ser um grande intrometido. Pobre coitado, mal sabia que assinara sua sentença de morte comigo, ao tentar me dizer o que deveria ou não fazer. Antes tivesse permanecido em silêncio.

— Deveria deixar para expor sua opinião quando fosse solicitado – respondi séria, com a rudez necessária para ele perceber minha falta de disposição para gracinhas.

Girando nos calcanhares e empenhada a subir imediatamente para a minha sala, deixei-o para trás.

É claro que podia sentir o olhar irônico e o meio sorriso atrás de minhas costas, acompanhado do provável sussurro: burguesinha mimada.

Sabia bem que era assim que Sasuke Uchiha me chamava pelos cantos. Um codinome que justificava minha antipatia em relação a ele, juntamente ao arquear das sobrancelhas que adorava exibir quando me pegava lendo livros de cunho político ou filosófico, como quem dizia: comunista de Rolex.

Sim, também sabia que era exatamente isso que o desgraçado pensava quando me olhava daquele jeito, pois certa vez ele pensou alto demais, a ponto de eu ouvir tal disparate; embora tenha preferido ignorar e fingir não ter sido atingida.

A passos pesados, e nenhum pouco preocupada com o fato de não ter agradecido a presteza do homem que acabara de me ajudar, segui para a sala; afinal, no fundo acreditava que poderia facilmente ter dado conta de uma chuva sozinha, e ele nada tinha que bancar o cavalheiro.

WonderwallWhere stories live. Discover now