Moby

39 1 0
                                    


Com o passar dos dias as coisas começaram a ir entrando nos eixos, exceto para Carlos, que continuava se consumindo em culpa.O outono desceu sobre a capital paulista com seus ventos um pouco mais frios ,e com eles a necessidade do uso de roupas mais quentes.Virgínia e Carlos saíram naquela manhã , pois ela precisava buscar mais agasalhos.Deixara sua casa praticamente abandonada  para poder ficar com Carlos e as crianças,em um ímpeto de boa-fé,mas já havia passado aquele baque inicial, e ela realmente precisava ir em casa.Pretendiam, ainda ,passar na volta no hospital ,para visitar a pequena Carol. Os meninos foram pra escola ,e na casa ficaram apenas Zilda e Dona Sâmia.Elas nunca haviam parado para conversar, mas talvez o frio, o fato de estarem apenas as duas, ou o chá de erva cidreira que Zilda preparou foram o estopim para o início de uma prosa.

- A Senhora aceita um chá, Dona Sâmia?É de erva-cidreira.

- Erva-cidreira?

- Foi a Dona Virgínia que comprou.Pra dar pro Senhor Carlos.Dizem que é bom pra acalmar o sono.

- A Virgínia ?E ele está tomando?

- A Senhora conhece o filho que tem, não é Dona Sâmia?Ele faz birra, tem vezes que parece criança.Tem dias que consegue enrolar a Dona Virgínia, outros dias não.

- Ele é muito teimoso.O pai dele era exatamente assim, sabia?O Carlos não puxou nada de mim.

- Eu não o conheci.Mas o Senhor Carlos fala muito nele,sempre com muito carinho.Ele era muito apegado ao pai?

- Muito,muito.Quando Carlos era garotinho o pai o levava para pescar, todo final de semana,se não fosse no sábado, era no domingo.Nem quando fazia um tempo feio como o de hoje isso os impedia.Eles iam até a marina onde Carlos tinha seu barco logo cedinho.Se não desse pra sair por causa do tempo, ficavam em um píer coberto pescando manjubas, ou perdiam umas boas horas engraxando os equipamentos.

- Eu não sabia disso.

- Eram bons tempos.Sempre traziam peixes frescos,minha geladeira vivia repleta de várias espécies.

- Engraçado, pois o Senhor Carlos não costuma comprar peixe...

- Ele nunca gostou muito.Gostava mais de pescar.Depois que o pai faleceu,perdeu o gosto completamente.Nunca mais foi a marina nem tampouco mais subiu em um barco até onde sei.

- Coitado do Senhor Carlos.Ele é jovem ainda, mas já teve tantas perdas...O pai, a esposa.Agora a Carla,que Deus a tenha.

- Ele sempre foi muito firme, sempre...Aguentou todas as atribulações que a vida foi lhe apresentando, uma a uma.Mas agora...Não sei não, estou preocupada.

- Ele vai melhorar, Dona Sâmia,tenha fé em Deus,e dê tempo ao tempo.

- Fé?Eu não sei, Zilda.Acho que isso foi algo importante que sempre deixei passar ao largo.Não é que eu não acredite em Deus, não é isso.Mas...Nunca fui devota,entende?

- E seu esposo?

- Ele rezava.Tinha uma coisa só dele, entende?Eu já sabia, tanto que nem puxava assunto nessas horas.Ele grudava as duas mãos no peito, e orava baixinho,com os dedos entrelaçados, eu até achava bonitinho.Nunca ouvi uma só palavra.Mas sei que era muito devoto de Santo Antoninho da Rocha Marmo.Conhece?

- Claro que conheço.Esse menino foi um santo em vida.Seu túmulo está no cemitério da Consolação.Fica até perto daqui, já fui lá algumas vezes.

- Eu também.

- E a Senhora ia então com seu esposo?E orava?

- Eu o acompanhei duas ou três vezes.Eu também rezava, e rezo até hoje, aliás tenho orado muito esses dias.Mas nunca rezei para santos.Sempre rezo para Deus.É como se...Bem, pode parecer tolice a minha, mas já que é pra pedir alguma coisa, eu peço logo para o Criador.

Campos de AlgodãoOnde histórias criam vida. Descubra agora