Devaneios

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         A armadura estava pesada demais, os cavalos sedentos, os homens exaustos.Acima de suas cabeças , nuvens negras se acotovelavam no céu fechando a passagem dos últimos raios de sol , anunciando a tempestade que viria .O corte no braço  ainda não havia cicatrizado, e  gotas sangue  iam salpicando as folhas no chão ,deixando um rastro intermitentemente sôfrego e cadenciado.Seus  olhos, treinados noites a fio por madrugadas de vigília pareciam mais  pesados do que de costume, indicando que  fechariam a qualquer momento. Sabia que a  escuridão traria consigo toda a série de infortúnios:Bárbaros, lobos famintos,refugos algozes vindos das profundezas do inferno viriam com a penumbra  atraídos pelo preço de suas cabeças, em especial a sua própria.Sua perseverança deveria ser ,no entanto, maior que seus medos.Era preciso conduzir seu superior e os demais soldados a algum lugar seguro.Uma fumaça tênue escapava ao longe e indicava companhia.Deveriam contornar, ou tentar a sorte?Um olhar momentaneamente hesitante foi dirigido para seu líder, semi-inconsciente no dorso de seu belo Andaluz e ,em seguida ,para os soldados que marchavam esperançosamente atrás dele .A verdade, inexorável à luz das circunstâncias,indicava que não há opção. O tempo não estava a seu favor.

         Grandes homens sabem que são obrigados a tomar decisões, mesmo quando as escolhas não parecem promissoras.Quando essas decisões implicam na vida de outros homens, a escolha parece mais difícil ainda.A guarda espera ansiosa por uma postura de seu primeiro,e ele a toma, sinalizando com um movimento de avanço.

         Alguns galhos iam  quebrando com os passos dos cavalos, algum relinchar ou tilintar de metais, algum comentário mudo, e nada mais.A coorte movimentava-se com cuidado.Com a proximidade, seus olhos foram identificando mais e mais a origem da fumaça, e com isso recobrando esperanças.Tratava-se de uma casa. Erguida de pedras carregadas a mão, recobertas pelo musgo do tempo.Alguns animais, e uma roça.Sim, isso era mais do que se podia esperar.Ele desceu de seu cavalo, bateu à porta,e uma linda jovem a abriu.Não teve tempo de anunciar quem eram , ou o que desejavam.O cansaço era maior, o desmaio eminente.Foi, até onde suas forças o permitiam, e desmaiou em braços desconhecidos.

         Alguns dias depois  acorda  e tem discernimento.Sua visão ganha nitidez, e consegue identificar melhor o lugar.Sente cheiro de flores, e percebe que está sentado no chão, em meio a um grande campo de papoulas brancas.Elas esbarram suavemente em seu corpo, ao sabor do vento que vem do norte.Ele sente-se seguro, acolhido, como há muito tempo não se sentia.A brisa fresca da manhã  debruça por sobre as videiras ,e o sol aquece seu corpo como nas manhãs tenras de primavera.Um abraço percorre seu corpo vindo por trás , mas ele sabe que não é de um inimigo.É um abraço de amor.Não traz consigo os horrores vividos em  batalhas, o pesadelo visto em outros tempos, a lembrança de irmãos de armas caindo ao chão como uvas maduras.O beijo que vem a seguir sela sua segurança, prova  que ele  não está em um lugar qualquer, está em casa,  com sua família,e sente com isso que não há mais sede de sangue, nem tampouco ira em seu coração.Todo homem procura seu espaço de paz, seu descanso final, uma morada onde possa ver os filhos crescendo e se tornando homens, para que um dia, quando tombar, saiba que plantou uma semente boa, que fez uma diferença para outro ser  e que sua memória seguirá, independentemente de onde esteja.Ali, naquele cenário, não importavam mais as honrarias conseguidas em campanhas, os altos cargos, todo ouro e jóias frutos de saques em batalhas.Foram vários anos servindo a glória do poderoso império, centenas de vidas ceifadas, tantas orgias quantas se pudesse ter, e de repente ali, naquele lugar, nada daquilo parecia ter a importância que por anos a fio lhes foi dada.

         Uma criança, um menino, vem ao seu encontro.Devia ter pouco mais de seis ou sete anos.Ele corre, sorrindo, por entre as flores.O amor que emana dele, o olhar, traduzem-se na felicidade do soldado.É seu filho, sem dúvida.Um tesouro, tão grande que todo dinheiro do mundo não poderia comprar.Que sorriso lindo tem o menino.Sua visão, no entanto,logo é interrompida:Um sinal de alerta dispara ao coração.Um grito ecoa, vindo da mulher que o abraça.A sombra aparece do nada, furtiva.Ele reconhece sua face, uma face familiar, alguém que já esteve a seu lado, alguém que já chamou de irmão.A voz é firme, e as palavras ferem o guerreiro , que precipita o que vai acontecer.A lâmina da adaga é afiada, e o movimento é perfeito!Um só golpe, logo abaixo do queixo, fruto de intenso treinamento de infantaria.A pequena cabeça , os olhos arregalados, um vestígio daquele sorriso ainda pendente aos lábios  permanece, enquanto o corpo inerte do menino cai, em meio as papoulas, manchando de vermelho rubro aquele cenário de paz.

         O bravo soldado reage,mas é agarrado.A mulher, é estuprada, frente a seus olhos,por vários homens, um após o outro, com seus hálitos fétidos e seu suor oriundo de meses de caminhada .É decapitada após satisfazer os desejos mundanos dos soldados, e largada para servir de comida aos animais e vermes da terra.Um golpe em sua nuca o retira de ação.Mormente serviria de acalanto para suas dores mais  momentâneas.

         Seus olhos abrem-se novamente, a vista ainda embaçada consegue visualizar o algarismo XIV. É sua nova morada, ele reconhece o lugar, já esteve ali em outras ocasiões. Os cordames esticam sua pele, ele sente a madeira fria do potro em suas costas.Amarrado, pronto para ser torturado, pelo tempo que pudesse suportar. Em meio ao torpor, o guerreiro vislumbra a face do demônio. Vislumbra a face de Lucius .   

Campos de AlgodãoOnde histórias criam vida. Descubra agora