Eu geralmente não sabia dizer que dia era. Só consigo saber o dia do mês e o da semana no início do ano, depois só lembro vagamente dos horários, e olhe lá. Estava chovendo bem forte do lado de fora da escola. O Pedro disse que seriam dois horários seguidos de História e que nós iríamos pro auditório ver um filme com a professora Janne, uma baixinha, fofinha, que fazia a sociedade grega ser menos chata.
Nós fomos pra uma sala enorme, com um ar condicionado pronto pra me matar congelada e um telão imenso, pra assistir Troia. Acho que havia umas trinta turmas de ensino médio lá. Todas as panelinhas se formaram e sobraram quatro lugares. A Natália sentou em um, o Henrique em outro, eu ao lado, e o Pedro na ponta.
– Você se importa que eu sente aqui? Porque se for pra você ficar com essa cara, eu procuro outro lugar, sem problemas.
– O Henrique e seu jeito de filho mimado que te faz ceder mesmo que você ainda nem tenha percebido.
– Eu nem vi que você estava aí.
– Ah, de qualquer forma, não quero incomodar.
– Você não incomoda nem desincomoda, tanto faz. Só faz silêncio.
– Desincomoda?
– Silêncio! – repeti.
– Ma, má.
– Cheguei! – Era o Pedro.
– Oi, Pedredor! – cumprimentei.
– Eu não perdi, e detesto esse apelido.
– Problema seu, agora me dá esse casaco e me empresta seu ombro. Encostei a cabeça no obro dele, tentei encolher minhas pernas ao máximo, para não tocar no encosto que estava do meu outro lado, mas ele foi um tanto quanto convidativo. Jogou algum pano, que eu suspeito ser um casaco muito fofinho, sobre a minha perna. Eu queria olhar, ou tirar de mim, mas foi inevitável não me sentir bem. Frio com coberta é como sábado de manhã e desenhos animados, não da pra resistir. Acordei em umas três partes do filme, mas ficar deitada estava mais interessante. Tentei escutar o que o Pedro e o Henrique estavam cochichando, mas não consegui. Eu ia perguntar depois o que era, mas fiquei com medo de ter sido sonho ou algo assim.
Quando o filme acabou, ligaram a luz e eu me senti um vampiro exposto ao sol; não brilhei, mas quase pude sentir meus olhos ardendo. Fui para a quadra em seguida, era aula de Educação Física. Sentei na arquibancada e fiquei procurando um motivo pra ter um bando de homens correndo atrás de uma bola e umas meninas por perto fazendo cara de comercial. Fiquei ouvindo música, contando quantas bolinhas havia na quadra, estralando os dedos, qualquer coisa até que a aula acabasse. Pra minha sorte, acabou, mas ainda haveria mais uma. Eu e o Pedro discutimos uns assuntos superimportantes, tipo o crescimento do meu cabelo e a barba dele. Na hora da saída, ele disse que precisava resolver umas coisas e me encontraria de noite. Ótimo. Fui andando sozinha no maior temporal.
– Ma, você vai pra casa nessa chuva?
– Não, vou esperar a próxima.
– Nossa, guria, tô tentando ser educado.
– Desculpa, eu nem consigo tentar essas coisas.
Ri um riso sarcástico. Ele sabia que eu era assim, não entendi a sensibilidade. Fui andando até que um imbecil passou com o carro e me deu um banho. Eu ficaria tranquila se fosse qualquer imbecil, mas era o Henrique.
– EU. VOU. MATAR. VOCÊ!
– Só se for de amor!
– Idiota! Sai daqui!
– Entra logo nesse carro! Você tá ensopada e agora suja, vai pegar uma pneumonia.
– Azar o meu, né!?
Então ele desceu do carro e veio andando na minha direção.
– O que você está fazendo?
– Se você quer ficar doente, também vou ficar, até sua birra passar.
– Burro, você vai deixar o carro parado no meio da rua nessa chuva?
– Não, vou esperar a próxima também pra deixar.
– HAHAHA! Por que você não coloca uma melancia na cabeça e fala que é a Carmen Miranda? Vai ser bem mais engraçado do que essas piadinhas.
– Ma, pela milésima vez, acho que a gente começou errado.
– Exatamente! É porque a gente não devia ter começado. Você me deixa na defensiva, é desconfortável, para com essa mania de ficar me seguindo.
– Henrique!
– Ele estendeu a mão num ato insistente de se reapresentar.
– Maria Alice!... E você não pode mais me chamar de Ma, porque Ma é pros íntimos, e não quero intimidade com você.
– Posso te levar em casa, ou você prefere que nós dois fiquemos doentes e que um carro bata no meu e cause um acidente só porque você é orgulhosa?
– Chantagista. Espero que você saiba que é só pelo acidente. Você ficar doente é puro merecimento.
– Como você quiser, Maria Alice.
– Ok! Pode chamar de Ma. O nome Maria parece uma briga.
– Então você desistiu de brigar?
– É só uma trégua. Você estacionou o carro no meio da rua e eu não quero sentir remorso por isso depois.
Fui em direção ao carro. Ele tentou abrir a porta pra mim, mas aquilo não precisava ser mais ridículo do que já era. Fui mais rápida e a abri sozinha. Liguei o som. Bem que queria mudar a música, mas ele tava ouvindo Missy Higgins, e fazia séculos que eu não escutava aquela música. Where I stood, boa. Comecei a cantar baixinho e ele ficou batendo o dedo no volante, no ritmo da música. Então eu tive que perguntar.
– Você gosta desse tipo de música?
– Não, é que... é, ah... Você sabe, a voz não é tão ruim e a melodia também não... Mas esse CD nem é meu, é... pois é...
Tá, o CD era dele e ele gostava. Eu ri pra ele perceber que eu estava rindo, e ele ficou sem graça... Seria bonitinho, mas vindo dele não dava para ser.
– Chegamos!Ele me olhou com uma cara suave.
– Vai querer me levar até a porta também?
– Eu não, tá frio pra caramba e o céu tá caindo, tenho certeza de que você pode nadar até a porta sozinha. Qualquer coisa, se prende na nossa, quer dizer, sua árvore e espera seu namorado chegar.
– Essa árvore é só minha.
– A provocação era em relação ao namorado... Contigo é tudo ao contrário mesmo, né?
– Todo mundo sabe que ele não é meu namorado. Se você quer chamar ele assim, problema seu.
– Não precisa ficar bravinha.
– Obrigada pela carona, ok? Minha árvore! Sem namorados! E para de me olhar com essa cara!
– Que cara?
– A cara de "você fica linda brigando!"
– Mas você fica horrível! Enfim, tchau, Ma!
Ele riu como se tivesse graça. O pior é que tinha. Saí do carro e bati a porta o mais forte que pude. Foi um bom troco.
– TU NÃO TEM GELADEIRA EM CASA NÃO?! – ele gritou pelo vidro da janela.
Mandei um beijo e ele me deu dedo. O dia já tinha valido a pena só por eu ter visto aquela cara de "vou te matar" dele. Parecia uma coisa bem doentia vendo de fora, mas era um sentimento bom.Entrei, me torci na varanda, andei pela sala e fui tirando a roupa. Subi correndo para o quarto e tomei um banho bem quentinho. Nada melhor do que não fazer nada, exceto quando sua cabeça quer pensar e pensar.

YOU ARE READING
Nem Todos Os Amores Se Chamam Henrique
RomanceMaria Alice passa por uma série de mudanças e, no meio de todas elas, conhece pessoas que mudam sua vida - pra sempre.