Capítulo I

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O homem de palavra fácil e personalidade  agradável raras vezes é homem de bem.  Confúcio


A espuma invadia a orla do mar em toda a extensão da costa arenosa. Uma massa pastosa, lembrando lava branca, tomava formas, movimentando-se, maleável, ao sabor do fluxo e refluxo das ondas. Na areia, o alvo manto, ora se enrugava pressionado pelas ondas menos vigorosas, ora se espraiava em direção ao mar quando estas se recolhiam, ora era empurrado para conquistar mais terreno seco com o impulso das vagas mais fortes. Cobria tudo, tremelicando e soltando partes de si, que esvoaçavam com o vento, impedindo que as aves pudessem debicar na areia húmida e deleitar-se com o alimento oferecido no abundante cardápio que o oceano usualmente transporta e deposita ao ceder o seu lugar no areal.

Naquele instante, a grande superfície líquida e salgada exibia-se crespa e violenta, embora a maré se manifestasse com baixa amplitude. Na época estival daquelas paragens não era costume testemunhar-se este comportamento agressivo do mar, principalmente na maré vaza.

O ambiente do nosso planeta parecia estar a dar uma reviravolta.

Somado ao surgimento de desconhecidos vírus, mortais para os mais débeis, que dizimavam rapidamente uns quantos seres vivos, um número crescente de regiões padecia sob a influência de imprevisíveis e intensos contrastes climáticos. A grande maioria dos vulcões extintos vomitavam as suas entranhas, ventos infindáveis secavam e varriam partes da crosta terrestre, incêndios de proporções gigantescas consumiam em poucos dias zonas pululantes de vida, tempestades assustadoras dizimavam algumas áreas e, neste ambiente caótico, incontáveis tipos de flora e de fauna extinguiam-se, incluindo o ser humano e as suas edificações.

Uma percentagem crescente de pessoas temia que estes desastres, presentemente assomando aqui e ali, prenunciassem algo bem mais devastador e global.

Para muitos, começava a despontar a crença de que ainda nos encontrávamos no começo...

O mais extraordinário em toda esta tragédia, era o fato de haver cada vez mais pessoas a usufruírem de uma alegria que não tinha lógica. Embora esta ainda se manifestasse num conjunto restrito da população mundial, o seu contágio era bem patente. Quanto mais o caos se afirmava, mais indivíduos viviam naturalmente um êxtase com uma felicidade sem nome e objeto. Eram aqueles que nada tinham a perder, ou melhor, os que não possuíam quaisquer apegos, nem mesmo à própria vida. Confiavam em cada momento e deixavam-se carregar por ele como pequenas crianças. A falta e o medo tinham abandonado o seu universo. Não sentiam carências, nem desconfortos. Desfrutavam simplesmente desse contentamento que os incendiava e elevava para outro espaço diferente, um estrato de tranquilidade. Continuavam a cumprir as suas tarefas familiares, sociais e profissionais e observavam com lucidez o caos que os envolvia, tanto na perda dos seus bens como na perecibilidade dos seus corpos, porém a diferença estava no sorriso permanente, na serenidade que emanavam e, sobretudo, na expressão do olhar. Quem estivesse mais atento, poderia constatar que este olhar refletia uma ausência de pessoa e de tudo o que ela acarreta, ou melhor, esses privilegiados tinham conseguido atingir um estado de verdadeira liberdade.

Por outro lado, a maioria da população humana não sentia esta nova forma livre de viver, fundamentalmente caraterizada por um estado de repouso constante no interior de si própria e de uma concentração apenas no momento presente. Nesses seres humanos verificava-se o oposto. Uma grande percentagem deles continuava a seguir cegamente os velhos padrões, aqueles que se baseavam na experiência do passado para projetarem o seu futuro, impondo o seu controlo sobre todas as situações. Com esta atitude, o desenrolar do seu quotidiano apoiava-se no pânico constante. Receavam angustiadamente a perda e agarravam-se freneticamente às soluções que o mental lhes oferecia para não se privarem daquilo a que estavam habituados, contudo nada parecia funcionar, pelo contrário, os obstáculos somavam-se e acumulavam-se num círculo vicioso, ou melhor, numa espiral irónica.

A confusão iniciava, assim, um processo de desmantelamento de ideias, da lógica e do entendimento de como o mundo se deveria conduzir e de ser regulado. O mental perdia o seu poder habitual, pois para ele, o conjunto de estruturas que o sustinham até aí, esfumavam-se, agora, gradativamente no nada.

Algo, sem definição, estava a emergir e manifestava-se num crescendo. O que era e até onde iria chegar, ninguém sabia. Final dos tempos? Uma nova Ordem mundial?

Este questionamento não imperava naqueles que viviam o momento presente; essas pessoas não se importavam com este tema, nem com nenhum, aliás, pois não havia espaço na sua alegria para preocupação alguma. O medo sobre o que se desenrolaria no futuro ensombrava apenas aqueles que se deixavam seduzir pelo caos, sem se aperceberem de que este provinha, tanto do seu interior, como do que observavam no exterior. Em geral, os seres humanos conservavam-se na ignorância, não reconhecendo que, curiosamente, os espaços do interior delas próprias e aqueles que presenciavam no exterior, confundiam-se, interpenetravam-se e fundiam-se num só. Era tudo o mesmo. Não havia separação. O que era conhecido e normal até àquele momento estava a mudar drasticamente e eles continuavam a querer segurar-se nas tábuas podres e gastas, compostas do mesmo pó para o qual os seus corpos ameaçavam retornar em breve e definitivamente.

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