Filipe manteve-se em contacto com Ana, tal como acontecera quando o pai estava presente. Trocavam fotos e falavam livremente de tudo como grandes amigos. Teresinha e Vodka, a qual estava a recuperar com alguma facilidade, eram o ponto-chave das conversas.
Numa altura em que deixou de haver contacto entre os dois por um período mais longo do que o habitual, em meados de abril, o jovem telefonou inesperadamente, perguntando se podia ir passar uns dias com elas.
Chegou pelas dez horas da noite.
Vodka ficou num tal estado de excitação que fustigava a cauda com força, como uma chibata, nas pernas de quem estivesse perto.
O visitante foi muito bem acolhido por todos, nomeadamente pelos pais de Ana, que ainda não o conheciam e que fizeram questão de que este ficasse num dos quartos de dormir da casa deles, dado que na sala de Ana o jovem não teria privacidade.
Ofereceram um jantar, no dia seguinte, para o qual convidaram Dalila e o genro, bem como Isabel e Victor.
Durante o dia, Filipe ficara em casa, muito satisfeito por ter a possibilidade de estar mais tempo com Teresinha, na companhia dos afáveis avós da menina, uma vez que Ana teve de se deslocar ao trabalho a fim de ficar lá todo o dia às voltas com a restauração de uma peça de grande porte, a qual não lhe era possível transportar para casa.
À noite, à mesa, o grupo confraternizava entre si alegremente.
Durante a sobremesa e o café, Teresinha, o membro mais concentrado daquele conjunto, sentada na sua cadeira alta de refeição, amassava bocados de bolo e maçã partida aos quartos, empanturrando a boca com avidez, tal qual um hamster. As bochechas, bem anafadas, ficavam mais lustrosas com este farto conteúdo que lhe esticava a pele rosada.
Por seu lado, o pai de Ana mantinha-se pensativo. Ficara em estado de choque com o que sucedera à sua filha e neta. Foi-lhe difícil aceitar que aquele homem de boa postura, agradavelmente simpático, solícito e carinhoso para com a sua prole as tivesse abandonado. Uns dias depois do incidente, matutou, matutou e decidiu colocar outras várias hipóteses à filha mais velha, para não molestar Ana, tais como: e se o fulano tivesse tido um ataque cardíaco, morrido e o cadáver estivesse no meio da mata, ou se ele se tivesse afogado no rio, ou ainda se tivesse ficado amnésico com uma pancada na cabeça? Para sua frustração foi de imediato dissuadido por Dalila e pelo genro, com as devidas provas quanto a estas suposições, pois não só existia a carta e ainda por cima manuscrita pelo fugitivo, mas igualmente a fuga tinha sido deliberada e planeada com antecedência, segundo contara o filho, ao ser avisado por Rubelo de que isso acabaria por acontecer. Todavia, mesmo com estes factos, o pai de Ana nunca ficara verdadeiramente convencido. Embora não comentasse nada, nem mesmo com a mulher, continuou sempre pensando e repensando sobre o tema, no seu íntimo. Durante a refeição, com todas aquelas testemunhas juntas, a sua mente não parava de cogitar no assunto. Tão embrenhado estava nestas conjeturas, que um dos pensamentos lhe escapou para os lábios, involuntariamente:
– Tem alguma notícia do pai, Filipe?
As conversas paralelas silenciaram. Todos fitaram o rapaz que corou ligeiramente atrapalhado.
– Não tenho. Nem conto ter... O meu pai evaporou-se definitivamente das nossas vidas. Disso quase ponho a mão no fogo. – respondeu melancólico.
– Eu também penso da mesma forma, pai – comentou Ana – não há esperança... – a voz ficou rouca.
Filipe hesitou, mas resolveu dizer:
– Ana, eu tencionava contar-te uma coisa... Ainda não houve oportunidade. Penso que posso contá-la agora diante de todos, não posso?
– Sim? Conta, por favor... – o olhar que a jovem lhe lançou era de angústia.
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ESPUMA DO MAR
RomanceUm grupo de pessoas vê-se envolvido numa estória de ambiguidade e de perigo iminente. Amores, desamores, novas amizades, a alacridade de uma criança e a sabedoria de um ancião dão cor ao enredo.