Capítulo IX

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O verão deu lugar a um outono seco e a um inverno rigoroso, com temperaturas bastante abaixo do normal.

Ana e Paulo aconchegavam-se mutuamente, continuando a viver no moinho, disfrutando intensamente da companhia um do outro, acompanhados pela trapalhona e inteligente Vodka, a fiel vigilante.

Dalila vinha quase todos os fins de semana para a casa de campo, convidando os amigos habituais.

Todo o grupo se comprazia com a presença de Rubelo e da própria Ana, a qual ultrapassara, finalmente, os seus bloqueios de inadaptação aos enervantes códigos comportamentais e sociais seguidos por alguns dos membros. O que mais a abalava era a falsidade de caráter e, para seu descontentamento, essa postura mostrava-se mais acentuada na irmã e em Berta do que nos outros. A jovem passou, com a nova atitude, a participar ativamente nas brincadeiras, harmonizando-se no conjunto, ao observar o seu parceiro e a forma como este se entendia perfeitamente com todos. Como não queria ser a ovelha negra aprendera intuitivamente um truque que se revelara ser um bom antídoto para os seus estados de sensibilidade emocional. Por conseguinte, dava uma espécie de permissão aos momentos que etiquetava como menos agradáveis para que estes prosseguissem livres do seu julgamento, retirando-se metaforicamente para um local na sua mente que nem ela mesma conseguia perceber onde se situava e no qual sentia que as emoções e os pensamentos nocivos perdiam força até se desvanecerem por completo. Era uma espécie de ausência momentânea do ego. Sempre que vinha uma daquelas criticazinhas venenosas e sorrateiras dentro da sua mente relativamente a alguém, a qual era responsável em desequilibrar a sua tranquilidade, usava esta artimanha secreta e íntima. Num ápice, ficava livre do pesadelo mental, aceitando tudo e todos, tal qual eram. Estava, desta forma, extremamente feliz ao conseguir superar as suas angústias, pensando que a partir dali nunca mais sofreria com os seus receios e inseguranças. Todavia, Ana não percebia que este comportamento, aparentemente firme e confiante, não dependia só dela, mas sim, essencialmente de Paulo e da sua postura de protetor, o qual a preenchia por completo, induzindo-lhe força através do seu constante desvelo para com ela. As inseguranças da jovem ficavam camufladas pelo amparo de que era alvo. Paulo conduzia-a numa estrada coberta de flores e a jovem deixava-se levar, sem se opor, constatando felicíssima que afinal sempre existia o amor verdadeiro, o único sentimento que valia a pena viver.

Uma tarde do mês de dezembro, um pouco mais amena do que o habitual para aquela altura do ano, o casal deslocou-se à vila mais próxima para adquirir alguns produtos de higiene sob um sol esbranquiçado que despontava, de quando em quando, por detrás de algumas nuvens brancas.

A maior parte das vezes, era Rubelo que ia sozinho à vila para se abastecer. Ana sabia que o namorado, com o seu feitio demasiado irrequieto, necessitava de mudança de ares e de confraternizar com as pessoas de lá, com as quais fizera amizade antes de a conhecer. Por seu lado, a pintora gostava do sossego e aproveitava as escapadelas dele, para se mimar, com banhos de imersão, máscaras faciais e tudo o que a fizesse sentir-se feminina, contrariando a tendência que o ambiente campestre provoca nas pessoas, tornando-as mais rudes no aspeto.

Embora frio, o dia estava luminoso.

No centro do vilarejo separaram-se para poupar tempo, como era habitual quando a jovem o acompanhava. O poeta dirigiu-se à única garagem de reparação de veículos do local a fim de comprar umas peças para o seu jipe e onde ia, frequentemente, buscar outras peças para outras ferramentas, enquanto Ana entrou num minimercado pouco povoado de clientes para se abastecer. Percorreu um dos pequenos corredores formados por estantes repletas de todo o tipo de artigos, tentando ver onde se encontravam os objetos que necessitava. Foi caminhando, com passo mais ou menos apressado, não tirando os olhos dos escaparates até ao final da estante, precisamente onde se encontrava um outro corredor perpendicular.

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