Capítulo III

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Marco! Temos de combinar uma coisa, de uma vez por todas!

− Estás mal disposta, Lu. Já vi pelos gritos...

− Pois estou, claro!! Então, ontem à noite fiquei à tua espera horas!! Mais uma vez, nem te dignaste avisar-me que te iam reter lá na empresa todo esse tempo! Tínhamos combinado sair...

− Eu concordo contigo, que foi muito aborrecido, mas quando somos chamados para as reuniões had hoc temos de largar tudo e correr para a sala de conferências, onde ficamos incomunicáveis. Não há volta a dar...

− Ultimamente têm havido muitas!

− Pois têm.

− Eu já me habituei a não reclamar das viagens urgentes que tens de fazer para o estrangeiro e às vezes estás mais de uma semana sem dar notícias, mas agora isto ultrapassou os limites ...

Marco interrompeu-a, respondendo veementemente e elevando a voz para se fazer ouvir:

Este é o meu trabalho! Quando nos juntamos eu avisei-te que era sigiloso! Tudo o que faço é confidencial, por isso não posso comentar nada contigo, nem mesmo para onde me desloco. É assim mesmo, faz parte do contrato que assinei, não posso mudar nada!

− Mais vale estar só... Porque assim sei com o que posso contar. Contigo, é como se estivesse sozinha, sem ter a liberdade de poder agir como quero! – Lu sentou-se no puf azul claro do hall, soluçando amargurada e escondendo a face nas mãos.

Marco ainda avançou um passo para afagar-lhe a cabeça, como fizera inúmeras vezes até sanar o desgosto da namorada com uma boa dose de sexo e carinhos, mas desta vez estacou e desistiu. Afinal, não tinha feito nada de errado, contudo a irritação da namorada tinha fundamento. Não deveria viver com ninguém, tendo em conta a sua situação profissional. Não era justo para a sua parceira. O relacionamento durava há cerca de ano e meio e estava repleto de discussões, sempre pelo mesmo motivo. Lurdes sentia-se traída, não só pelo companheiro estar impedido de revelar-lhe a sua vida quotidiana no trabalho, mas, sobretudo, pelas sigilosas ausências em cima da hora, de dias ou até de semanas, sem que tivesse notícias dele. Marco admitiu para si mesmo que Lu estava coberta de razão, tomando a decisão de que o relacionamento teria de acabar definitivamente naquele preciso momento, uma vez que, claramente, não tinha futuro, acrescido ao facto de que estava farto de sentir a desarmonia destruindo o seu lar, o único espaço onde podia verdadeiramente descontrair e ser ele próprio.

A vida profissional de Marco revestia-se de uma tensão e luta constantes. O elemento "surpresa" fazia parte da sua função e na maioria dos casos lidava com situações violentas.

Deixou-a terminar o choro, ficando a olhá-la, de pé.

Lurdes estranhando o silêncio, pouco usual por parte dele naquelas circunstâncias, elevou a cabeça e fitou-o com uma expressão indagadora, por entre as lágrimas.

− Lu... estás cheia de razão... Mas como sabes, eu não posso fazer nada quanto a isso. Nada vai mudar. Aceito a tua proposta de terminarmos a nossa relação. − disse calmamente, com ombros descaídos e olhar ausente.

A companheira voltou a abandonar-se no pranto e o parceiro pegou no blusão e saiu para a rua, fechando a porta suavemente, encerrando assim este capítulo da sua vida amorosa.

Marco regressou ao fim da tarde e verificou, aliviado, que a casa estava vazia da presença de Lurdes e das suas coisas.

Uma jarra antiga, de estimação, que a sua mãe herdara da avó, jazia desfeita em cacos no chão claro de tábuas envernizadas da sala, junto ao recuperador de calor encastrado na laje de granito.

Deu uma volta pela atraente vivenda, principalmente na marquise onde se alojavam os seus preciosos bonsais e verificou que, à partida, o único estrago parecia ter sido apenas a peça de porcelana, embora a destruição deste objeto fosse bem escolhida para o entristecer. Desculpou a autora dos destroços para poder, finalmente, ficar em paz consigo mesmo. A ex-namorada deixava-se arrebatar pela irritação com frequência. Ainda era muito jovem, tendo menos vinte anos do que Marco, com os seus vinte e dois anos e sempre fora mimada pelo pai, um homem bastante influente.

Encomendou uma pizza e sentou-se, solitário, em frente ao televisor, vendo um jogo de ténis, sem vontade de fazer fosse o que fosse.

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