Capítulo V

3 1 0
                                    


Em poucos dias, Marco recuperou da emoção da perda da sua companheira. No fundo, acabou por admitir a si próprio que tinha estado com Lu devido à sua imensa carência em necessitar de sentir o calor humano, ou melhor, familiar, sempre que regressava do seu trabalho duro e desgastante. Ter alguém em casa à sua espera em situação perfeitamente harmoniosa com o aprazível ambiente que construíra, era tudo o que almejava. Os momentos de sexo com Lurdes tinham sido excelentes, mas poucas mais vantagens, para além dessa, lograra retirar da relação que tivera com a namorada. Não desfrutavam dos mesmos gostos e desejos. Marco adorava espaços amplos, arrumados, bem cuidados e, acima de tudo, muito luminosos. Lurdes raramente arrumava a roupa e as suas coisas com o mesmo cuidado que o dono da casa dispensava a todos os seus bens, deixando habitualmente os seus pertences espalhados pela casa, invadindo até a marquise, o lugar de eleição de Marco, onde este passava parte das suas horas livres a cuidar e a acarinhar os lindos bonsai que criara de raiz, ansiando atingir a estabilidade emocional nessa concentração intensa, esquecendo as agruras vistas e vividas, num ou noutro caso mais feroz que lhe era entregue. A própria prática dos bonsais e toda a atividade na natureza, que Marco tivesse inclinação para encetar, era motivo de desentendimento entre os dois, pois Lurdes pendia fortemente para a vida social agitada noturna, com muito entorpecimento ditado pelo álcool e propensão para entretenimentos caros, negando-se a aderir a qualquer tipo de distração que estivesse fora destes parâmetros.

O trabalho real de Marco nada tinha a ver com a empresa multinacional que lhe pagava o vencimento e onde, supostamente, teria o seu posto de funcionamento. A companhia era uma fachada para encobrir uma organização secreta de elite, da qual fazia parte como agente de campo. Ninguém, nem mesmo a sua família, apenas constituída por uma irmã mais velha, residindo na Austrália, ou os poucos conhecidos mais chegados podiam saber do que se tratava. Quando lhe perguntavam o que fazia, alegava ser prospetor de furos de petróleo, viajando por todo o lado para esse efeito, ou seja, o de encontrar locais onde fosse viável perfurar em busca da fonte deste combustível.

Levantou-se cedo, naquele dia de folga, com um céu cinzento a dominar inusitadamente fora de época, pois ainda decorria a plena estação estival. Decidiu telefonar ao seu habitual companheiro de corrida e quase seu vizinho. Moravam a dois quarteirões de distância um do outro. Recebeu uma desculpa, na qual o amigo informou que se encontrava fora da cidade e, com muita pena sua, não podia acompanhá-lo, desta vez. Marco apreciava muito a companhia deste seu conhecido, bastante mais velho, mas ainda em perfeita forma. Tinham entabulado conversa precisamente no parque, há uns anos, encontrando-se, sem contar, por diversas vezes e quando verificaram que os percursos de regresso às respetivas casas coincidiam, iniciaram laços de amizade.

Fez a corrida durante cerca de uma hora e meia, visando atravessar uma enorme área protegida frondosa, conhecida pelas suas árvores ancestrais, situada a cerca de quatro quilómetros da zona onde vivia. Carregou ali a sua vitalidade, como era hábito, percorrendo o parque com um sentimento de comunhão com a natureza. Regressou satisfeito, tomou o pequeno-almoço e depois de um chuveiro generoso dedicou-se ao seu passatempo favorito, na marquise, podando e regando cuidadosamente as suas magníficas obras de arte naturais, as quais se exibiam ditosas numa extraordinária exuberância, enchendo a vista a qualquer observador. Variadíssimos formatos de vasos rasos, minúsculos e lustrosos, em tom verde, vermelho escuro, preto e castanho, acolhiam troncos e ramos artisticamente retorcidos, com folhagem densa e viçosa, criando um belíssimo cenário miniatura de árvores com as suas folhas, flores ou frutos e as suas raízes semiescondidas numa exígua área de terra coberta de musgo.

Aprendera esta arte alguns anos atrás com um solitário japonês idoso, seu vizinho, Goku Izô. A ligação de amizade gerou-se, por acaso, tendo como motivo um desagradável acidente sofrido por Goku, no qual Marco se viu obrigado a levá-lo à urgência do hospital mais próximo e a acompanhá-lo nos primeiros dias. Izô tropeçara numa pedra solta, caindo desamparadamente no passeio, quando ambos iam a sair das respetivas casas para colocarem o lixo no mesmo contentor público. O mestre das árvores bonsai, partira duas costelas, para além das dolorosas escoriações em várias partes do corpo e esteve limitado de movimentos durante uma boa temporada, devido à recuperação lenta motivada pela idade.

ESPUMA DO MAROnde histórias criam vida. Descubra agora