Capítulo 36: Ascensão (FINAL)

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Gadrieel

Meu tempo havia acabado. Era algo que eu já havia aceitado, já fazia tempo.

Eu não morreria pelas mãos sujas de Jack, ou pelas impiedosas de Vergil. E, quando a hora chegasse, que fosse do modo certo, após ter feito o que deveria.

Eu não conseguiria me despedir dela, ou do restante. Era covarde demais para encarar os olhares incrédulos e acusadores, que, obviamente, eu tinha plena consciência de que merecia. Até mais do que receberia. Mas não podia suportar, não ainda. Era demais para mim.

Termino de escrever a carta, e repouso a pedra por cima do papel dobrado, colocando tudo sobre sua escrivaninha. Ela dormia um tanto inquieta, mas serena. Suas pálpebras tremiam levemente, como se o sonho passasse por seus olhos. Como eu sentiria falta dela. Das conversas, de seus olhos esverdeados me encarando, tão inocentes e curiosos a principio, tornando-se maduros e corajosos com o tempo. Seus revirares de olhos com minhas ironias, bloqueando meus reais sentimentos. Como eu queria tê-la salvo a tempo, mas sabia que ninguém era mais capaz do que ela. Eu desejava do fundo do meu coração não ter sido tão afogado pro meus próprios medos ao invés de ter dito a verdade desde o início. Talvez pudéssemos ter derrotado ele juntos, mas havia muito mais na mesa. Eu precisava ir atrás de Kimberley agora, e me afastar para sempre daqueles que me acolheram. 

Olho para Eva mais uma vez antes de ir, me aproximando da cama. Toco sua perna delicadamente, temendo acordá-la.

- Eu te amo. - Sussurro no escuro, sentindo a dor do meu próprio eco, que jamais seria correspondido. E eu não poderia culpá-la por me odiar.

Me viro para a porta, e sigo até o lado de fora. A ampulheta já havia cessado seu tempo para mim aqui. 


Evanora

Eu não estava conseguindo dormir. Uma sensação desconfortante e quase insuportável me manteve acordada até eu me forçar tanto, que acabei pegando no sono.

Pesadelos não costumavam ser tão realistas para mim. Na verdade, os que eu tinha na adolescência eram quase cômicos e sua falta de sentido não me preocupava ou amedrontava. Não foi o que aconteceu desta vez.

Eu estava deitada em minha cama, mas não em Akhadia, e sim em minha casa, na Terra. Meu quarto parecia o mesmo, tudo em seu devido lugar, como eu sempre havia deixado. O vento balançava as cortinhas azuis escuras através das janelas entreabertas, suavemente, sussurrando pelo cômodo. A luz prateada da lua mantinha o quarto iluminado, e o ambiente confortante e arejado, tudo perfeito para uma noite de sono tranquila e revigorante, como eu me lembrava. Até que os ponteiros do relógio na parede começaram a rodar de trás para frente, e depressa demais, como uma hélice. O luar, antes brando, agora era sangrento e escuro. Sombras se esgueiravam pela minha janela, e eu me levanto, assustada, correndo até o banheiro, e me trancando. Me afasto da porta lentamente após girar a tranca, sentido uma breve sensação de segurança, que evaporou assim que as sombras começaram a subir pelo meu corpo, grudando-se em minhas pernas e braços. Tento afastá-las com as mãos, esfregando-as, mas minha pele já estava completamente coberta. Abro a torneira, em uma tentativa estúpida de lavar os braços, e quando olho para o espelho, a criatura com olhos amarelos olhava de volta para mim, com a expressão horrorizada, e é quando eu acordo, por fim, gritando. Olho para o lado, e o sol ainda não havia nascido. O relógio indicava, surpreendentemente, onze e quarenta e quatro da noite.

Passo a mão por minha testa suada, e abro as janelas para refrescar minha pele quente. O céu estava manchado em verde, roxo e azul, como uma pintura, ao redor da lua cheia resplandescente. Não era comum ou habitual. Algo estava acontecendo.

As Peças Celestiais: Ascensão (Livro I)Onde histórias criam vida. Descubra agora