O tempo passa e as dores amenizam até desaparecer.
Depois de uma semana de luto, dona Perpétua resolveu que deveria animar os filhos. Levantou cedo e preparou bolo, biscoito de polvilho e pão fresco. O fogão à lenha era quente demais e os braços começavam a doer sob o peso da idade, mas gostava de trabalhar nas únicas coisas que sabia fazer. Na fazenda dos Carvalhos era escrava doméstica da cozinha e foi assim que conheceu o pai de Ícaro. Não queria dormir com ele, mas não teve escolha, foi coagida até aceitar.
Era mocinha ainda, virgem, e foi a noite mais dolorosa de sua vida. Dela já engravidara do patrão. Rezou muito para que o filho não nascesse branco, pois a sinhá era o demônio. O marido sempre se aproveitava das escravas, e a mulher, dolorida pelos cornos e sem poder para se vingar do homem, também punia as escravas. Às vezes vendia os bebês assim que desmamavam e era sempre um terror.
Perpétua rezou todos os dias por horas e horas.
No fim das contas a fé não teve tanto efeito. É verdade que o filho não era branco, mas era quase branco e não tinha outro pai possível que não fosse o patrão. Perpétua teve azar de estar em uma fazenda onde até mesmo os capitães do mato e os feitores eram negros, impossibilitando uma mentira que a salvasse das atenções odiosas da sinhá Carvalho.
O pai não reconheceu Ícaro imediatamente, entretanto, a esposa enciumada tratou de punir Perpétua que nas palavras dela era uma oferecida. Dessa forma arrancou da escrava um dos dentes da frente, na intenção de torná-la feia.
Perpétua não se importou com isso, não era muito vaidosa, só queria viver em paz. Um dente era um preço pequeno a pagar para quem poderia morrer chicoteada.
Depois de todo o alvoroço pôde finalmente nomear o filho. O pai quis que fosse batizado na Igreja e assim ela fez, pois se dissesse que não queria por aquela não ser sua fé, acabaria no tronco. Chamou o menino de Ícaro para que ele jamais esquecesse o quão perigoso é fazer algo sem se importar com as consequências.
Ícaro nunca fora inconsequente, de fato.
A vida foi dura nos primeiros anos e quando o pai contratou um tutor para ensinar as letras ao escravinho que não era negro acabou por despertar nos filhos legítimos a inveja. Sempre Ícaro chorava porque os meninos implicavam e batiam. Por vezes montavam em suas costas e o faziam de cavalo, em outras cuspiam em sua face. Um dia o pequeno revidou com um soco e a sinhá Carvalho quase lhe arrancou a mão.
Perpétua implorou de joelhos e chegou a beijar os pés sujos da mulher, para demovê-la da terrível ideia, entretanto não adiantou. O que realmente fez parar o plano de vingança foi a ordem do marido para que parasse com aquilo ou devolveria ela aos pais.
Foram anos difíceis demais até que Perpétua apaixonou-se por um homem da lavra. Era bonito o tal Cristiano, ela realmente o amou de todo o coração. Quando engravidou dele, finalmente sinhá Carvalho parou de persegui-la. Da união de ambos nasceu Antônio, meio irmão de Ícaro.
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Tesouro de Clementine (Donas do Império - Livro 2) [Concluído]
Historical Fiction[Romance] Dizem que sorte é quando a oportunidade encontra o preparo. A marquesa de Diamantais ofereceu para senhorita Desfleurs a oportunidade de esconder-se em uma de suas propriedades mais suntuosas. Sem melhores opções, a desesperada grávida ace...