A hora que sempre chega

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Ícaro acordou tarde no dia seguinte, pois trabalhara muito no anterior

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Ícaro acordou tarde no dia seguinte, pois trabalhara muito no anterior. Assim que abriu os olhos, fez como sempre fazia e tomou água. Viu-se em um espelho de corpo inteiro, com o pijama todo amarrotado e em roupas de dormir. O cabelo ondulado ia a todas as direções e a barba já estava um pouco grande outra vez. Sentiu preguiça de se barbear.

Decidiu acordar a mãe, caso ela ainda estivesse dormindo, afinal Perpétua tinha o hábito de já cedo saltar da cama.

Ícaro saiu no corredor, ainda em roupas de dormir, e seguiu para o quarto da mãe, que era o maior da casa. Era de costume que o maior quarto fosse do proprietário, mas ele insistiu que a mãe ficasse ali com a melhor vista do jardim e mais espaço para si.

Devagar Ícaro abriu a porta e viu que a mãe ainda estava na cama. As poucas luzes vindas da fresta de uma das janelas incidiam sobre o montinho tapado pelas cobertas. O homem andou até essa janela e abriu sem fazer barulho, deixando o ar fresco e puro da manhã invadir o quarto. Em seguida caminhou pé por pé até a cama da mãe e pulou sobre o colchão enquanto gritava.

— Acorde, Dona Perpétua! — Ele sorria com a voz.

A mãe, entretanto, não esboçou reação. Nem mesmo se moveu entre os lençóis de tecido fino.

Ícaro sentiu uma pontada no peito. Ergueu a colcha que cobria a mãe e viu que ela estava parada. Quando encostou na pele do rosto da mulher, a encontrou gelada. Testou a respiração dela, mas não havia mais sinal de vida. Não inspirava e expirava o ar, e o coração já não batia mais.

Perpétua morrera enquanto dormia.

Ícaro se agarrou ao cadáver gélido, chorando, sem acreditar naquela rasteira que tomara da vida.

Os gritos de dor que soltara chamaram a atenção de Antônio, que apareceu correndo. Quando viu a cena do irmão abraçando a mãe que tinha os olhos fechados e os braços caídos, o irmão mais novo deduziu o tinha acontecido. As pernas se tornaram incapazes de sustentar o corpo e ele caiu de joelhos.

Chorou enquanto Ícaro avisava aos prantos que a mãe tinha falecido.

Depois de anos de luta para chegarem ali, da longa espera pela liberdade, e de conseguirem conforto, a mãe não resistiu.

Ícaro nunca saberia, mas a mãe sofrera uma parada cardíaca enquanto dormia. A predisposição foi agravada pelo trabalho escravo. As péssimas condições de sobrevivência levavam muitas pessoas a ter uma expectativa de vida extremamente baixa, e assim foi com Perpétua. Era jovem ainda, como muitos, mas teve a vida ceifada. Nem mesmo a mudança de rotina pôde salvá-la do fim ingrato.

Os empregados tentaram acudir os homens que tinham acabado de perder o maior apoio de suas vidas. Perpétua foi o pilar que os manteve em pé diante das agruras. Era seu céu e chão. De repente, metade do mundo não estava mais ali.

O tempo se perdeu no choro. A ação se perdeu no choro.

Enquanto em Basto Mato os irmãos pranteavam, um empregado entregou a notícia a Clementine Desfleurs. A mulher conferia as condições de saúde dos equinos da propriedade quando soube do ocorrido.

Mesmo completamente chocada e sentindo o coração pesar como chumbo, Clementine selou e montou Lumière. Em trote rápido acompanhou o empregado de volta à propriedade de Ícaro.

O cavalo mal tinha parado no curral quando Clementine saltou de seu dorso para o chão, caindo de modo desajeitado que deu um jeito no tornozelo. Mesmo com dor e mancando, ela correu para a casa.

Entrou pela porta da frente e seguiu o fluxo das pessoas até que encontrou o quarto onde Antônio e Ícaro choravam desconsolados. Claramente eram os trabalhadores que preparavam o funeral, pois ambos os filhos, sentados cada um de um lado da cama, só sabiam segurar as mãos inertes do defunto que estava deitado sobre o colchão, ainda de camisola.

Clementine se aproximou de Ícaro e colocou a mão no ombro do namorado. Ele não olhou para ela no entanto, apenas colocou a mão livre sobre a dela.

A francesa sentiu um terrível nó na garganta ao ver Perpétua morta, e começou a se lembrar dos momentos que tivera com ela. O choro correu silencioso, expressando coisas que não podiam ser ditas, pois não existem no mundo palavras que descrevam a sensação de perder alguém querido.

Assim como não existem palavras para descrever a dor de perder alguém amado, por esse motivo Ícaro não tinha o que dizer. Sentia que flutuava em uma nuvem de dor enquanto tudo o que via era a mãe. Parecia a ele que lhe tinham arrancado uma parte do corpo que ele nunca soubera existir. Algo profundo, enraizado e singelo, que, de repente, fazia muita falta, porque em seu lugar ficara um terrível vazio.

Clementine disse a ele que voltaria depois e perguntou aos empregados se poderia ajudar com os preparativos, mas eles negaram a ajuda. Disseram que a alma dela seria encomendada na fé que preferira em vida.

Sem saída, Clementine voltou para Flor Bonita onde dispensou todos do trabalho e declarou dois dias de luto. Arrumou-se em trajes apropriados para o luto e voltou para Basto Mato, prometendo aos que ficavam que avisaria quando o funeral viesse a começar.

E assim fez.

Ícaro não dissera uma palavra. Antônio se consolava nos abraços de amigos que ela não conhecia.

Um caixão providenciado às pressas estava sobre a mesa de jantar da sala, cercado por flores. Dentro, Perpétua repousava em um caríssimo vestido de soberbo vermelho. Havia muitas jóias com ela.

A cerimônia de despedida não se delongou a pedido de Antônio, e ao crepúsculo a primeira pá de terra caiu sobre a madeira do caixão. Enquanto o hemisfério dizia adeus àquele dia e o mundo se dispensava de uma data, a família Carvalho se despedia de seu pulsante coração: A injustiçada Perpétua.

Que descansasse em paz, porque foi tudo que restara depois da árdua jornada.

Aos que ficaram, coube apenas o sofrimento.

Tesouro de Clementine (Donas do Império - Livro 2) [Concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora