Capítulo 44

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O lago do Diabo Prt.2

Seus olhos tinham esse brilho ardente e aveludado que faz cismar e estremecer ao mesmo tempo. Seu nariz desenhava-se em uma linha pura e correta; seus lábios, cor de rosa, formavam nos cantos deliciosas covinhas, e sua fronte, que dominava este todo sedutor, perfeitamente se harmonizava com seus abundantes e voluptuosos cabelos. Hélène não tinha, entretanto, a frieza da maior parte de suas compatriotas. Seu andar pausado, seus movimentos  preguiçosos, suas pálpebras meio caídas tinham um ardor, uma vivacidade, uma chama misteriosa, que davam à sua beleza um atrativo irresistível aos olhos e aos corações.

E, além disto, era ainda tão jovem, tinha ainda vivido tão pouco! Conhecia-se em sua fala, em seus gestos,  em seu olhar um tom de virgindade que admirava e seduzia. Quem a via não podia deixar de perguntar a si mesmo que tesouro ocultaria aquele coração meio entumecido, que vaga tristeza seria aquela que pairava as vezes por essa pálida fronte, que impaciência seria a que de quando em quando fazia encolher o canto dessa úmida boquinha. Percebia-se que, não obstante as suas delicadas formas, tinha Hélène um desses gênios enérgicos, igualmente resignados à dor ou dispostos à luta... Nunca uma lágrima lhe umedecera as pálpebras, nunca um queixume lhe partira dos lábios. Contudo, tinha Hélène medo de M. Holder. Esse homem tinha às vezes um olhar singular que a fazia estremecer. Era alto, robusto, infatigável. Uma ocasião, em um acesso de cólera e de ciúmes, não querendo atracar-se com Hélène, a quem talvez tivesse morto, lançara um dos criados pela janela.

Era, felizmente, uma janela baixa, e o pobre criado escapou só com algumas contusões. Mas, desse dia em diante, todas as vezes em que se  lembrava disto, a pele da moça cobria-se de arrepios.  

Cinco meses se passaram,  até que chegou o verão. Estavam no mês  de agosto, no tempo da caça. M. Holder saía muitas vezes de manhã e não voltava para casa senão à boca da noite. Ceava-se, então, e, depois de levarem uma hora a tomar fresco debaixo das arvores do parque, retiravam-se M. Holder para o seu quarto e Me. Holder para o seu. M. Holder deitava-se imediatamente e ferrava um profundo sono até de manhã. Hélène levava frequentemente acordada até alta noite, ou pelo menos deixava o candeeiro arder, às vezes, até o romper do dia.

Foi nessa época que se propalaram os boatos que fizeram dar à lagoa o nome de Lago do Diabo. Dizia-se que todas as noites um fantasma branco, vestido com uma túnica branca e carregando um fardo, que parecia ter seu peso, passava  furtivamente pelas alamedas do parque e se dirigia misteriosamente para o lago. Havia não longe dali uma pequena porta no muro que deitava para o campo. O fantasma, abrindo essa porta, desaparecia na direção do solitário pavilhão, que era a única habitação que havia nas imediações de M. Holder.

Não foi preciso mais para despertar curiosidade, e por vários dias o pavilhão tornou-se objeto de minuciosa inquisição. Foi, porém, trabalho perdido.

O pavilhão era mudo como um túmulo; as janelas e a porta estavam hermeticamente fechadas; nunca se tinha visto entrar ali viva alma, nem sair quem quer que fosse.

Não tiveram, portanto, os curiosos outro remédio senão contentarem-se com o que já sabiam, que na realidade bem pouco era. Não tardava, porém, a tudo mudar de face. Uma noite—o céu estava escuro e carregado de densas nuvens; grossos pingos de chuva caíam de quando em quando, e ouvia-se ao longe os surdos roncos de uma tempestade—, acabava de dar meia-noite em todos os relógios da quinta. Hélène, levantando-se da poltrona em que estava sentada, deitou negligentemente nos ombros um capote, com cujo capuz tapou a cabeça, e, assim embuçada, desceu para o parque.

Quando foi pondo o pé na alameda, um relâmpago, fendendo as nuvens, a fez estremecer, por lhe parecer ter visto, ao clarão desse relâmpago, o vulto de um homem que caminhava rapidamente a pequena distância dela.

O vento soprava de rijo; o ar estava pesado, os ramos das árvores balançavam-lhe por cima da cabeça, pressagiando próxima tormenta, e a trovoada, que continuava a roncar, despertava-lhe no coração dolorosos ecos.

A pobre mulher esteve em termos de voltar;  porém, um sentimento mais forte do que a sua vontade a impelia para diante, e não tardou a chegar ao lago e, pouco depois, à pequena porta.

Respirava a custo; o coração batia-lhe com violência. Nesse momento, a sombra, que vira um instante antes passar-lhe por junto, ergueu-se de repente diante dela e uma mão de ferro agarrou-lhe o braço. Esta mão era a de M. Holder...

Hélène fechou os olhos para não ver o medonho facho que desferia aquele olhar feroz... As forças abandonaram-na e, caindo de joelhos no úmido chão, pôs as mãos como que para implorar misericórdia.

— Dê-me chave do pavilhão — disse M. Holder, com voz imperiosa.

— O que quer fazer?— balbuciou Hélène, semimorta de terror.

— Você verá.

M. Holder agarrou ambas as mãos da moça, que apertou com as suas.

— A chave. Já lhe disse.

— Aqui está.

Hélène estava transida de dor.

— Está bem. Agora, acompanhe-me.

— Eu... Meu Deus!

— Siga-me.

— Tenha compaixão de mim, senhor. Não vê que estou quase morrendo?

Uma gargalhada foi a resposta a esta súplica, e M. Holder arrastou resolutamente Hélène para o pavilhão.

O pavilhão, que tinha sido o alvo de tantas investigações dos camponeses dos arredores, era, com efeito, habitado. Havia alguns meses que ali residia um homem ainda bastante jovem, tendo apenas  vinte e cinco anos. Encontrando-se com Hélène várias vezes nas partidas de Dinan, apaixonara-se por ela.




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