Capítulo 39

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O Cachorro Preto

Afonso era um sujeito alegre que vivia contando piadas. Mesmo assim, alguns de seus colegas desconfiavam de que ele guardava algum segredo. Embora fosse bastante comunicativo, recusava-se a falar do próprio passado. E muitos de seus conhecidos não o consideravam possuidor do melhor caráter deste mundo.

Todas as noites, depois do trabalho, Afonso ia para um determinado bar e ficava bebendo, petiscando e passando cantadas nas garotas. Normalmente ele era um dos últimos fregueses a deixar o local. Naquela noite, ele foi o último a sair. Um denso nevoeiro dava à rua deserta um aspecto assustador. Meio bêbado, ia tomar o rumo de sua casa quando alguma coisa o fez paralisar-se por uns instantes. Era um cachorro grande, preto, que o encarava com insistência.

- Passa! - disse Afonso.

Mas o cão não se moveu.

Afonso falou mais alto, bateu com o pé no chão, gritou. O animal permaneceu a encará-lo com seus olhos de um tom castanho-amarelado que lhe pareceram algo entre tristes e decididos. O único som que Afonso ouvia, além da própria voz, era o da respiração do cão, que não se moveu. Embora estivesse com um pouco de medo, Afonso deu-lhe as costas e seguiu caminhando em direção a sua casa, que ficava ali perto. Pelo menos, o cachorro não o seguiu - permaneceu estático onde estava.

Na noite seguinte, a mesma coisa: ao sair do bar, lá estava o cão negro. Afonso gritou com ele, e ele continuou a fitá-lo de uma forma que parecia desnudar-lhe a alma. Afonso foi-se embora, apreensivo, e o cão continuou no mesmo lugar. A cena se repetiu por várias noites. Numa delas, Afonso saiu do bar com uma lata de cerveja e atirou-a na direção do animal. Nem assim o bicho se moveu. Quando deixava o bar na companhia de alguém, percebeu que não enxergava o cachorro. Mas sempre que saía sozinho ele estava lá, cravando-lhe os olhos. Numa determinada noite, após haver tido uma desilusão amorosa, ficou bebendo só até altas horas. Afonso até se havia esquecido do cachorro, por causa de sua irritação. Mas, quando saiu do bar, lembrou-se dele. Havia novamente um denso nevoeiro, comum naquela cidade durante aquela época do ano. A rua estava erma e escura. Afonso olhou em volta. Não viu nem sinal do cão. Respirou aliviado e deu alguns passos na direção de sua casa.

Nesse instante, sentiu uma mão pesar sobre seu ombro e se voltou. Deparou-se com dois homens, que tinham o rosto coberto. Um deles mostrou-lhe uma faca.

- A carteira ou a vida - disse ele.

Afonso demorou um pouco para entender que estava sofrendo um assalto. Os efeitos do álcool o deixavam confuso. Excitado pela bebida, resolveu reagir. Tentou dar um soco no assaltante que estava desarmado. Mas o fato é que mal conseguia se manter em pé, e o sujeito facilmente o derrubou, preparando-se para começar a chutá-lo.

De repente, Afonso viu uma sombra negra se lançar sobre o assaltante e fazê-lo rolar pelo chão. O outro assaltante recuou um pouco, mas depois investiu contra a criatura com a faca. Esta lançou-se em sua garganta. O homem soltou um grunhido, o último som que conseguiu emitir, e deixou cair a faca. Afonso ouviu o metal da arma tilintando ao cair na calçada e sentiu o sangue respingar sobre si. Tentou se levantar, mas só conseguiu sentar-se no chão. O cão negro lançou-se sobre o outro assaltante e Afonso viu, com certo horror, que o animal o mordia no rosto, arrancando-lhe parte da face. O infeliz berrou, desesperado. Afonso finalmente conseguiu se levantar e saiu dali, correndo, cambaleando, caindo e tornando a levantar-se, até que finalmente entrou em casa. Seu casaco estava manchado de sangue vermelho-escuro. Livrou-se da peça de roupa e mal teve tempo de chegar ao banheiro, onde vomitou, um pouco por causa da bebedeira, um pouco por causa da cena grotesca que acabara de presenciar.

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