Capítulo 33

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A tortura por esperança

Há muitos anos, ao cair da noite, sob as abóbadas do Tribunal de Saragoça, o venerável Pedro Arbués de Espila, sexto prior dos dominicanos de Segóvia e Grande Inquisidor da Espanha, seguido de um frade redentor (mestre torturador), e precedido de dois familiares do Santo Ofício, que levavam os lampiões, desceu a um calabouço recôndito. A fechadura de uma pesada porta rangeu. Entraram num mefítico in pace, onde a luz proveniente de alto de uma janela gradeada deixava entrever, entre as argolas engastadas nas paredes, um cavalete enegrecido pelo sangue, uma fornalha e um cântaro. Sobre um leito de palhas, preso por grilhões, com uma golilha de ferro a cingir-lhe pescoço, permanecia sentado, desfigurado, aos farrapos, um homem de idade incerta.

O prisioneiro não era outro senão o rabino Aser Abarbanel, judeu aragonês que, acusado de usura e desumano desprezo aos pobres, havia sido submetido, há mais de um ano, a torturas. Entretanto, com uma “cegueira tão dura quanto o seu couro”, negara-se ele a abjurar.

Envaidecido por uma ascendência mais que milenar, orgulhoso por seus antigos ancestrais — pois todos judeus dignos desse nome são ciosos de seu sangue —, o rabino descendia, talmudicamente, de Otoniel e, por conseguinte, de Ipsiboë, mulher do último juiz de Israel, circunstância que também sustentara a sua coragem em meio a suplício incessantes.

Foi com lágrimas nos olhos que o venerando Pedro Arbués de Espila, pensando nesta alma que, tão obstinadamente, se esquivava da salvação, aproximou-se do trêmulo rabino e lhe disse as seguintes palavras:

— Meu filho, regozija-te. Os teus sofrimentos neste mundo estão prestes a acabar. Se, diante de tanta obstinação, tive de permitir, com pesar, que usassem de extrema severidade para contigo, o meu dever de fraterna correção tem os seus limites. És a recalcitrante figueira[4] que, passado tanto tempo sem render frutos, termina por mirrar… Mas só Deus pode decidir sobre a tua alma. Talvez a infinita Misericórdia brilhe para ti no instante supremo! Devemos esperar! Exemplos têm ocorrido… Amém! Descansa, pois, em paz esta noite. Amanhã, integrarás o auto de fé. Isto significa que tu serás exposto à fogueira, braseiro premonitório da Chama Eterna. Bem sabes, meu filho, que ela queima à distância e a Morte leva ao menos duas horas (às vezes três) para advir, por causa dos panos molhados e gelados com os quais procuramos proteger a fronte e os corações dos holocaustos. Apenas quarenta e três serão os supliciados. Considera que, sendo o último da fila, tereis suficiente tempo para invocar Deus, para que te oferte esse batismo de fogo, que é o do Espírito Santo. Tem, pois, esperança na Luz e dorme.

Terminando este discurso, dom Arbués, havendo feito um sinal para que desacorrentassem o desgraçado, abraçou-o com ternura. Depois, foi a vez do frade redentor que, em voz muito baixa, pediu ao judeu perdão pelo que lhe havia feito sofrer em prol de sua redenção. Em seguida, achegaram-se os dois agentes do Santo Ofício, cujos beijos, dados através dos capuzes, foram silenciosos. Acabada a cerimônia, o prisioneiro ficou — sozinho e atônito — entre as trevas.

O rabino Aser Abarbanel, de boca seca e rosto aturdido pelo sofrimento, passou a fitar, primeiro sem grandes atenções, a porta cerrada. “Cerrada?” Esta palavra despertou, no fundo de seu ser, entre confusos pensamentos, um devaneio. Por um instante, entrevira a luz débil dos lampiões entre porta e os umbrais. Uma mórbida ideia de esperança, devido à debilidade de seu cérebro, convulsionou-lhe todo o ser. Arrastou-se para a insólita coisa que vira! E, muito suavemente, deslizando um dedo, com meticulosa precaução, pela nesga, puxou a porta para si. Oh, que assombro! Por um acaso extraordinário, o agente, que a havia fechado, girara a pesada chave um pouco antes da hora, chocando-a contra a coluna de pedra. Por isto, a lingueta enferrujada não penetrara o engate, e a porta resvalou para dentro.

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